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Entrevista: Frei Betto
Por VEJA   19 de dezembro de 2002
Deus, Fidel e Lula. Essas são as três devoções do escritor e religioso Frei
Betto, uma das pessoas com maior ascendência sobre o presidente eleito
Sem ter o nome incluído em nenhuma lista de ministeriáveis, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, encontra-se no centro do poder. Amigo dileto e espécie de assistente espiritual de Luiz Inácio Lula da Silva há 22 anos, o escritor e frei dominicano recusa o título de guru do presidente eleito, mas admite ter com ele uma relação que o autoriza a oferecer ao petista de reprimendas a conselhos que não se limitam à área social, sua especialidade. Frei Betto afirma que dá e continuará dando conselhos de economia a Lula - prática que agora pretende estender também à equipe do presidente eleito. "Falarei com todos os seus ministros", diz. Em entrevista a VEJA, o religioso criticou o presidente George W. Bush, o FMI, a Alca e o neoliberalismo. E falou sobre a fé e as tentações que a rondam. Veja - Do ponto de vista religioso, como é o presidente eleito? Frei Betto - Existem duas coisas que o Lula faz questão de tratar com muita discrição: sua família e sua fé. Ele gosta muito de orar. Todas as vezes em que o convidei para participar de uma oração ou de uma celebração, ele nunca se recusou. É devoto de São Francisco de Assis, de quem tem várias imagens em casa, e, na intimidade, faz sempre o sinal-da-cruz antes das refeições.
Veja - O senhor disse que gostaria de morar no Palácio da Alvorada, como uma espécie de conselheiro espiritual do presidente e da primeira-dama... Frei Betto - Essa notícia é falsa, e fiquei muito irritado com ela. Não tenho nenhuma veleidade de querer morar em palácio e minha intimidade com a família prescinde disso. Mas desde 1980 é assim. Sempre houve tentativas de obstruir minha relação com o Lula. Inveja e ciúme são sentimentos humanos. Mas acho ofensivo e desrespeitoso quando dizem que sou guru do presidente. Ele não precisa de guru. Somos amigos fraternos. Minha relação com ele é de quem elogia, de quem critica, e vice-versa. Muitas vezes eu pego no pé dele.
Veja - O senhor discute assuntos econômicos com ele também? Frei Betto - Muito. E discutirei com todos os seus ministros. Eu tenho a vantagem de ser um curinga nessa história. Não tenho ambições políticas nem mesmo sou filiado ao PT.
Veja - O senhor já gritou "Fora FMI". Como vê a relação do novo governo com o Fundo? Frei Betto - Pelo que conheço da história do FMI, onde ele plantou sua semente deixou um deserto de infertilidade social. Espero que, pela primeira vez, não seja assim. Acho inevitável que o país cumpra seus acordos, mas temo que o FMI não perceba que, agora, seu papel é o de um parceiro, e não o de um gerenciador das ações econômicas do governo.
Veja - O senhor já disse que a Alca é uma tentativa de anexação dos Estados Unidos. Continua pensando assim? Frei Betto - Nos moldes em que está, a Alca é, sim, a meu ver, uma tentativa de anexação dos países da América Latina à órbita da Casa Branca. A diferença é que, quando disse isso, não havia nenhuma abertura para discutir alterações no projeto. Felizmente, a conjuntura muda, e a minha avaliação dela também. Hoje, sou a favor de uma renegociação em que se consiga retirar todo o ranço imperialista e colonialista que existe na proposta atual, até para que não aconteça com a América Latina o que aconteceu com o México, depois do Nafta.
Veja - Mas o México virou o oitavo exportador do mundo, tem um dos menores índices de desemprego da América Latina e o maior PIB, atualmente. Frei Betto - O México pode ter melhorado seus índices econômicos, mas não melhorou seus índices sociais. Eu me recuso a avaliar o crescimento de um país por seus índices econômicos. E o Nafta aumentou barbaramente a dependência do país em relação aos Estados Unidos.
Veja - O senhor acredita que o Brasil possa sobreviver sem os Estados Unidos? Frei Betto - Não acredito. Mas também não acredito que devamos nos ajoelhar diante do império da águia. Os Estados Unidos têm de aprender que o mundo não é o quintal deles. Acho que custa ao presidente Bush, a quem, em minhas palestras, eu chamo de Búfalo Bush, entender aquilo que o profeta Isaías já disse há 2.600 anos: "Só existirá paz como filha da justiça". Eu não quero achar que isso que está aí seja definitivo e que eu não possa mais sonhar nem ter utopias porque as saídas talvez não estejam tão próximas. Como cristão e conhecedor da história da humanidade, posso dizer que os problemas que existiam naquela época são mais ou menos os mesmos que temos agora. Durante séculos, acreditou-se, por exemplo, que a escravidão era um fato consumado. Mas a utopia nunca deixou de permear a história. Eu quero ajudar a criar essa cultura que hoje é chamada de utópica. O neoliberalismo, a partir do momento em que produziu a mercantilização do planeta, fechou as portas da utopia.
Veja - Como assim? Frei Betto - O neoliberalismo inverte a equação da economia clássica que é pessoa-mercadoria-pessoa: eu, Betto, visto esta roupa para facilitar a minha sociabilidade. Nessa situação, você tem, nas duas pontas, a pessoa. Hoje, a equação mudou: é mercadoria-pessoa-mercadoria. Se eu chego em sua casa de ônibus, tenho um valor Z. Se eu chego de BMW, tenho um valor A. Eu sou a mesma pessoa, mas a mercadoria que me reveste é que me imprime mais ou menos valor. Um caso mais extremo: o jovem que, na companhia do irmão e da namorada dele, ajudou a matar os pais da menina e, no dia seguinte, comprou uma moto. Na cabeça dele, ter a moto, agregar a si esse valor, é mais importante que a vida daquelas pessoas.
Veja - O senhor não está atribuindo ao neoliberalismo poderes que ele não tem? Transformando-o numa espécie de entidade do mal? Frei Betto - Ele vira uma entidade do mal à medida que só tem um objetivo obsessivo, que é o de ampliar o consumismo. Ou seja, tudo é o mercado. É como se o mercado morasse num palácio, no alto de uma montanha, tivesse o telefone de alguns comentaristas econômicos e ligasse todas as manhãs, dizendo: "Hoje não estou de bom humor". Ou então: "Hoje acordei bem". É essa cultura consumista que, do ponto de vista filosófico, eu qualifico de neoliberal. O neoliberalismo não é só um fenômento econômico. É uma filosofia de vida. E a TV aberta contribui para disseminar essa filosofia.
Veja - Por quê? Frei Betto - A TV é uma concessão pública cedida a certas famílias que, até onde eu sei, não revertem nenhuma porcentagem da fortuna que arrecadam com a publicidade aos cofres públicos. E nem o Estado, dada a concessão, se preocupa em manter um mínimo de controle de qualidade sobre ela. O contribuinte brasileiro deve ter acesso a um mecanismo que possibilite esse controle. A questão é: queremos fazer dos nossos filhos cidadãos e a TV quer fazer deles consumistas.
Veja - Como funcionaria esse mecanismo? Frei Betto - Temos de exigir um código de ética da parte dos anunciantes e das emissoras. Se você perguntasse a minha avó se uma relação sexual deve ser mostrada ao vivo na TV, ela certamente ficaria muito escandalizada. Hoje, a representação disso não só é muito comum na TV como você assiste às pessoas falando o tempo todo da intimidade. Eu acho que isso é um desserviço à educação, à civilização, à ética e aos valores. Da mesma forma que um produto, para ser lançado no mercado, passa por uma série de entrevistas com consumidores em potencial, penso que esse tipo de programa também deveria passar por uma consulta a um grupo representativo da sociedade, que diria se aquilo fere ou não os princípios de uma sociedade que nós queremos construir. O Estado, que é o dono da televisão, participaria desse grupo como mediador.
Veja - Poderão chamar a isso de censura. Frei Betto - Aos que chamarem isso de censura, eu direi que, então, sejam coerentes e não eduquem seus filhos, não ensinem a eles o que são valores e o que é ética. Deixem que eles façam o que bem entenderem. Se você for coerente e fizer isso, eu vou admitir que você não concorde com o que chamo de controle de qualidade, e não de censura.
Veja - É verdade que foi o senhor quem levou o papa a Cuba? Frei Betto - Não foi bem assim. Durante doze anos, assessorei vários governos socialistas em suas relações com a Igreja, na qualidade de um religioso que entende bem o mundo do marxismo e que acreditava que poderia haver uma relação harmoniosa entre a Igreja e o Estado. Quando conheci Fidel Castro, em 1980, junto com o Lula, tivemos uma conversa que começou às 2 da madrugada e terminou às 6 da manhã. Fiz a ele duas perguntas que o deixaram em estado de perplexidade.
Veja - Quais foram? Frei Betto - Perguntei: "Comandante, qual a relação do governo cubano com a Igreja Católica em Cuba? E, antes que o senhor responda, quero dizer que vejo três hipóteses para ela. A primeira: de hostilidade, o que seria ótimo para a Casa Branca, porque confirma que o socialismo é incompatível com a religião. A segunda: de cooptação, que seria a negação da modernidade, uma vez que o respeito às duas instituições é uma conquista da modernidade. A terceira: de indiferença, o que seria também ótimo para os cubanos que são contra a revolução, porque eles têm a Igreja como trincheira de sua postura contra-revolucionária". Ele disse: "Eu nunca havia pensado nisso, você tem razão". E me pediu que o ajudasse a melhorar a relação de Cuba com a Igreja Católica - o que acabou acontecendo e favorecendo a visita do papa.
Veja - E a segunda pergunta? Frei Betto - Disse a ele: "Por que o partido e o Estado cubano são confessionais?". Ele levou um susto: "Como confessionais?". Eu disse: "Sim, comandante, a partir do momento em que o Estado é oficialmente ateu, ele é confessional. Porque a confessionalidade não está apenas na profissão da fé em Deus, mas na negação dela também. E a conquista da modernidade é que o Estado e o partido sejam laicos". Poucos anos depois, ele mudou a Constituição, e hoje o Estado cubano é laico.
Veja - Então o senhor ajudou a mudar a Constituição de Cuba? Frei Betto - Mudei a Constituição e o estatuto do partido comunista cubano também. Hoje um cristão pode pertencer aos quadros do partido.
Veja - Como frade dominicano, o senhor fez votos de pobreza e de castidade. No aspecto material, impõe-se algum tipo de restrição? Frei Betto - Voto de pobreza não é assim: "Eu não vou ter nada". Significa, sobretudo, que meu compromisso de vida tem de ser sempre com os mais pobres. Tenho o direito de ter tudo aquilo que é útil para o meu trabalho, por exemplo. Também gosto de comer bem, tomo meu vinho... Mas sei fazer isso com moderação, tanto que não engordo.
Veja - E a tentação do sexo, do amor? Frei Betto - Vi muitos padres constituir família porque primeiro se ligaram a uma mulher, e não porque primeiro chegaram à conclusão de que seu lugar não era a vida religiosa. Tenho certeza de que muitos deles, se pudessem, dariam marcha a ré. Eu me sinto muito feliz nos dominicanos, muito feliz como religioso. A vida tem mil possibilidades. A gente tem de abraçar algumas e renunciar a outras.
Veja - Mas o senhor já sentiu medo de sucumbir a essas tentações? Frei Betto - Nunca houve nada que me abalasse. Mas também tem o seguinte: eu não brinco com as tentações.
Veja - Como assim? Frei Betto - Não dou margem para certas coisas... Às vezes, não por uma intenção de enamoramento, mas por uma intenção de cuidado, há mulheres que, sabendo que a gente é solteiro, celibatário, querem administrar a vida da gente... Eu tenho muito cuidado com isso, não permito essas aproximações. Sou cauteloso.
Veja - O poder o atrai? Frei Betto - O poder, tal como é entendido hoje, é uma perversa maneira de se comparar a Deus. E seduz porque reduz a distância entre o desejável e o possível. No meu caso, talvez pela minha espiritualidade e pela minha experiência na prisão, desenvolvi um grande despojamento diante da vida. Então, minha ambição não é de ter poder, mas de servir. Depois, tenho um talento que independe de emprego, que é a minha escrita. Sou um autor brasileiro muito traduzido no exterior e só não vendo mais porque me recuso a atender a convites para aparecer na televisão.
Veja - Por que o senhor os recusa? Frei Betto - O principal motivo é que, se aceitasse todos os convites que me fazem, poderia virar alvo de um grande assédio público. E, talvez por saber quão vaidoso sou interiormente, evito coisas que possam alimentar essa tentação. Sou feito de barro e sopro como todo mundo.
Veja - Em suas palestras, o senhor costuma dizer que acredita na existência de vida inteligente fora da Terra. Com base em que o senhor afirma isso? Frei Betto - Acredito piamente. Não só acredito como vi duas vezes discos voadores. A primeira vez, eu estava saindo da feira com minha mãe, em Belo Horizonte, e vi um disco na forma de um pastel luminoso cobrir um posto de gasolina. Minha mãe viu e eu vi. A segunda vez foi aos 13 anos, também em Belo Horizonte, no centro da cidade, e eu vi um aglomerado de pessoas olhando para o céu, e lá tinha um disco preto parado e, de repente, o disco passou a subir, subir, até sumir. Somos um planeta periférico situado em uma dos 100 bilhões de galáxias que existem no Universo. Não posso imaginar que, tendo sido semeadas tantas estrelas, apenas num pequeno planeta a vida tenha vingado.
Veja - Mas foi esse planeta periférico que Cristo escolheu para vir... Frei Betto - Não sei como, mas o mistério da salvação deve ter se dado também em outros planetas.
Sem ter o nome incluído em nenhuma lista de ministeriáveis, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, encontra-se no centro do poder. Amigo dileto e espécie de assistente espiritual de Luiz Inácio Lula da Silva há 22 anos, o escritor e frei dominicano recusa o título de guru do presidente eleito, mas admite ter com ele uma relação que o autoriza a oferecer ao petista de reprimendas a conselhos que não se limitam à área social, sua especialidade. Frei Betto afirma que dá e continuará dando conselhos de economia a Lula - prática que agora pretende estender também à equipe do presidente eleito. "Falarei com todos os seus ministros", diz. Em entrevista a VEJA, o religioso criticou o presidente George W. Bush, o FMI, a Alca e o neoliberalismo. E falou sobre a fé e as tentações que a rondam. Veja - Do ponto de vista religioso, como é o presidente eleito? Frei Betto - Existem duas coisas que o Lula faz questão de tratar com muita discrição: sua família e sua fé. Ele gosta muito de orar. Todas as vezes em que o convidei para participar de uma oração ou de uma celebração, ele nunca se recusou. É devoto de São Francisco de Assis, de quem tem várias imagens em casa, e, na intimidade, faz sempre o sinal-da-cruz antes das refeições.
Veja - O senhor disse que gostaria de morar no Palácio da Alvorada, como uma espécie de conselheiro espiritual do presidente e da primeira-dama... Frei Betto - Essa notícia é falsa, e fiquei muito irritado com ela. Não tenho nenhuma veleidade de querer morar em palácio e minha intimidade com a família prescinde disso. Mas desde 1980 é assim. Sempre houve tentativas de obstruir minha relação com o Lula. Inveja e ciúme são sentimentos humanos. Mas acho ofensivo e desrespeitoso quando dizem que sou guru do presidente. Ele não precisa de guru. Somos amigos fraternos. Minha relação com ele é de quem elogia, de quem critica, e vice-versa. Muitas vezes eu pego no pé dele.
Veja - O senhor discute assuntos econômicos com ele também? Frei Betto - Muito. E discutirei com todos os seus ministros. Eu tenho a vantagem de ser um curinga nessa história. Não tenho ambições políticas nem mesmo sou filiado ao PT.
Veja - O senhor já gritou "Fora FMI". Como vê a relação do novo governo com o Fundo? Frei Betto - Pelo que conheço da história do FMI, onde ele plantou sua semente deixou um deserto de infertilidade social. Espero que, pela primeira vez, não seja assim. Acho inevitável que o país cumpra seus acordos, mas temo que o FMI não perceba que, agora, seu papel é o de um parceiro, e não o de um gerenciador das ações econômicas do governo.
Veja - O senhor já disse que a Alca é uma tentativa de anexação dos Estados Unidos. Continua pensando assim? Frei Betto - Nos moldes em que está, a Alca é, sim, a meu ver, uma tentativa de anexação dos países da América Latina à órbita da Casa Branca. A diferença é que, quando disse isso, não havia nenhuma abertura para discutir alterações no projeto. Felizmente, a conjuntura muda, e a minha avaliação dela também. Hoje, sou a favor de uma renegociação em que se consiga retirar todo o ranço imperialista e colonialista que existe na proposta atual, até para que não aconteça com a América Latina o que aconteceu com o México, depois do Nafta.
Veja - Mas o México virou o oitavo exportador do mundo, tem um dos menores índices de desemprego da América Latina e o maior PIB, atualmente. Frei Betto - O México pode ter melhorado seus índices econômicos, mas não melhorou seus índices sociais. Eu me recuso a avaliar o crescimento de um país por seus índices econômicos. E o Nafta aumentou barbaramente a dependência do país em relação aos Estados Unidos.
Veja - O senhor acredita que o Brasil possa sobreviver sem os Estados Unidos? Frei Betto - Não acredito. Mas também não acredito que devamos nos ajoelhar diante do império da águia. Os Estados Unidos têm de aprender que o mundo não é o quintal deles. Acho que custa ao presidente Bush, a quem, em minhas palestras, eu chamo de Búfalo Bush, entender aquilo que o profeta Isaías já disse há 2.600 anos: "Só existirá paz como filha da justiça". Eu não quero achar que isso que está aí seja definitivo e que eu não possa mais sonhar nem ter utopias porque as saídas talvez não estejam tão próximas. Como cristão e conhecedor da história da humanidade, posso dizer que os problemas que existiam naquela época são mais ou menos os mesmos que temos agora. Durante séculos, acreditou-se, por exemplo, que a escravidão era um fato consumado. Mas a utopia nunca deixou de permear a história. Eu quero ajudar a criar essa cultura que hoje é chamada de utópica. O neoliberalismo, a partir do momento em que produziu a mercantilização do planeta, fechou as portas da utopia.
Veja - Como assim? Frei Betto - O neoliberalismo inverte a equação da economia clássica que é pessoa-mercadoria-pessoa: eu, Betto, visto esta roupa para facilitar a minha sociabilidade. Nessa situação, você tem, nas duas pontas, a pessoa. Hoje, a equação mudou: é mercadoria-pessoa-mercadoria. Se eu chego em sua casa de ônibus, tenho um valor Z. Se eu chego de BMW, tenho um valor A. Eu sou a mesma pessoa, mas a mercadoria que me reveste é que me imprime mais ou menos valor. Um caso mais extremo: o jovem que, na companhia do irmão e da namorada dele, ajudou a matar os pais da menina e, no dia seguinte, comprou uma moto. Na cabeça dele, ter a moto, agregar a si esse valor, é mais importante que a vida daquelas pessoas.
Veja - O senhor não está atribuindo ao neoliberalismo poderes que ele não tem? Transformando-o numa espécie de entidade do mal? Frei Betto - Ele vira uma entidade do mal à medida que só tem um objetivo obsessivo, que é o de ampliar o consumismo. Ou seja, tudo é o mercado. É como se o mercado morasse num palácio, no alto de uma montanha, tivesse o telefone de alguns comentaristas econômicos e ligasse todas as manhãs, dizendo: "Hoje não estou de bom humor". Ou então: "Hoje acordei bem". É essa cultura consumista que, do ponto de vista filosófico, eu qualifico de neoliberal. O neoliberalismo não é só um fenômento econômico. É uma filosofia de vida. E a TV aberta contribui para disseminar essa filosofia.
Veja - Por quê? Frei Betto - A TV é uma concessão pública cedida a certas famílias que, até onde eu sei, não revertem nenhuma porcentagem da fortuna que arrecadam com a publicidade aos cofres públicos. E nem o Estado, dada a concessão, se preocupa em manter um mínimo de controle de qualidade sobre ela. O contribuinte brasileiro deve ter acesso a um mecanismo que possibilite esse controle. A questão é: queremos fazer dos nossos filhos cidadãos e a TV quer fazer deles consumistas.
Veja - Como funcionaria esse mecanismo? Frei Betto - Temos de exigir um código de ética da parte dos anunciantes e das emissoras. Se você perguntasse a minha avó se uma relação sexual deve ser mostrada ao vivo na TV, ela certamente ficaria muito escandalizada. Hoje, a representação disso não só é muito comum na TV como você assiste às pessoas falando o tempo todo da intimidade. Eu acho que isso é um desserviço à educação, à civilização, à ética e aos valores. Da mesma forma que um produto, para ser lançado no mercado, passa por uma série de entrevistas com consumidores em potencial, penso que esse tipo de programa também deveria passar por uma consulta a um grupo representativo da sociedade, que diria se aquilo fere ou não os princípios de uma sociedade que nós queremos construir. O Estado, que é o dono da televisão, participaria desse grupo como mediador.
Veja - Poderão chamar a isso de censura. Frei Betto - Aos que chamarem isso de censura, eu direi que, então, sejam coerentes e não eduquem seus filhos, não ensinem a eles o que são valores e o que é ética. Deixem que eles façam o que bem entenderem. Se você for coerente e fizer isso, eu vou admitir que você não concorde com o que chamo de controle de qualidade, e não de censura.
Veja - É verdade que foi o senhor quem levou o papa a Cuba? Frei Betto - Não foi bem assim. Durante doze anos, assessorei vários governos socialistas em suas relações com a Igreja, na qualidade de um religioso que entende bem o mundo do marxismo e que acreditava que poderia haver uma relação harmoniosa entre a Igreja e o Estado. Quando conheci Fidel Castro, em 1980, junto com o Lula, tivemos uma conversa que começou às 2 da madrugada e terminou às 6 da manhã. Fiz a ele duas perguntas que o deixaram em estado de perplexidade.
Veja - Quais foram? Frei Betto - Perguntei: "Comandante, qual a relação do governo cubano com a Igreja Católica em Cuba? E, antes que o senhor responda, quero dizer que vejo três hipóteses para ela. A primeira: de hostilidade, o que seria ótimo para a Casa Branca, porque confirma que o socialismo é incompatível com a religião. A segunda: de cooptação, que seria a negação da modernidade, uma vez que o respeito às duas instituições é uma conquista da modernidade. A terceira: de indiferença, o que seria também ótimo para os cubanos que são contra a revolução, porque eles têm a Igreja como trincheira de sua postura contra-revolucionária". Ele disse: "Eu nunca havia pensado nisso, você tem razão". E me pediu que o ajudasse a melhorar a relação de Cuba com a Igreja Católica - o que acabou acontecendo e favorecendo a visita do papa.
Veja - E a segunda pergunta? Frei Betto - Disse a ele: "Por que o partido e o Estado cubano são confessionais?". Ele levou um susto: "Como confessionais?". Eu disse: "Sim, comandante, a partir do momento em que o Estado é oficialmente ateu, ele é confessional. Porque a confessionalidade não está apenas na profissão da fé em Deus, mas na negação dela também. E a conquista da modernidade é que o Estado e o partido sejam laicos". Poucos anos depois, ele mudou a Constituição, e hoje o Estado cubano é laico.
Veja - Então o senhor ajudou a mudar a Constituição de Cuba? Frei Betto - Mudei a Constituição e o estatuto do partido comunista cubano também. Hoje um cristão pode pertencer aos quadros do partido.
Veja - Como frade dominicano, o senhor fez votos de pobreza e de castidade. No aspecto material, impõe-se algum tipo de restrição? Frei Betto - Voto de pobreza não é assim: "Eu não vou ter nada". Significa, sobretudo, que meu compromisso de vida tem de ser sempre com os mais pobres. Tenho o direito de ter tudo aquilo que é útil para o meu trabalho, por exemplo. Também gosto de comer bem, tomo meu vinho... Mas sei fazer isso com moderação, tanto que não engordo.
Veja - E a tentação do sexo, do amor? Frei Betto - Vi muitos padres constituir família porque primeiro se ligaram a uma mulher, e não porque primeiro chegaram à conclusão de que seu lugar não era a vida religiosa. Tenho certeza de que muitos deles, se pudessem, dariam marcha a ré. Eu me sinto muito feliz nos dominicanos, muito feliz como religioso. A vida tem mil possibilidades. A gente tem de abraçar algumas e renunciar a outras.
Veja - Mas o senhor já sentiu medo de sucumbir a essas tentações? Frei Betto - Nunca houve nada que me abalasse. Mas também tem o seguinte: eu não brinco com as tentações.
Veja - Como assim? Frei Betto - Não dou margem para certas coisas... Às vezes, não por uma intenção de enamoramento, mas por uma intenção de cuidado, há mulheres que, sabendo que a gente é solteiro, celibatário, querem administrar a vida da gente... Eu tenho muito cuidado com isso, não permito essas aproximações. Sou cauteloso.
Veja - O poder o atrai? Frei Betto - O poder, tal como é entendido hoje, é uma perversa maneira de se comparar a Deus. E seduz porque reduz a distância entre o desejável e o possível. No meu caso, talvez pela minha espiritualidade e pela minha experiência na prisão, desenvolvi um grande despojamento diante da vida. Então, minha ambição não é de ter poder, mas de servir. Depois, tenho um talento que independe de emprego, que é a minha escrita. Sou um autor brasileiro muito traduzido no exterior e só não vendo mais porque me recuso a atender a convites para aparecer na televisão.
Veja - Por que o senhor os recusa? Frei Betto - O principal motivo é que, se aceitasse todos os convites que me fazem, poderia virar alvo de um grande assédio público. E, talvez por saber quão vaidoso sou interiormente, evito coisas que possam alimentar essa tentação. Sou feito de barro e sopro como todo mundo.
Veja - Em suas palestras, o senhor costuma dizer que acredita na existência de vida inteligente fora da Terra. Com base em que o senhor afirma isso? Frei Betto - Acredito piamente. Não só acredito como vi duas vezes discos voadores. A primeira vez, eu estava saindo da feira com minha mãe, em Belo Horizonte, e vi um disco na forma de um pastel luminoso cobrir um posto de gasolina. Minha mãe viu e eu vi. A segunda vez foi aos 13 anos, também em Belo Horizonte, no centro da cidade, e eu vi um aglomerado de pessoas olhando para o céu, e lá tinha um disco preto parado e, de repente, o disco passou a subir, subir, até sumir. Somos um planeta periférico situado em uma dos 100 bilhões de galáxias que existem no Universo. Não posso imaginar que, tendo sido semeadas tantas estrelas, apenas num pequeno planeta a vida tenha vingado.
Veja - Mas foi esse planeta periférico que Cristo escolheu para vir... Frei Betto - Não sei como, mas o mistério da salvação deve ter se dado também em outros planetas.