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Fome Zero não é sopa

Por Valor Econômico    12 de março de 2003
Eliana Cardoso

A obra "Uma teoria da justiça" fez de John Rawls um autor importante da filosofia política nos EUA e no mundo. O livro usa o conceito do véu da ignorância. E indaga como seria a sociedade que o homem antes de nascer escolheria para viver, se agisse em interesse próprio e não soubesse se viria ao mundo em berço de ouro, rico e talentoso ou totalmente desprotegido e mal dotado. Segundo Rawls, a resposta implica em dois pilares para a justiça: os direitos individuais invioláveis e a prioridade absoluta de transferir recursos para os mais necessitados - ordenadamente, começando pela transferência para aqueles que se encontram em pior situação.

Esta teoria da justiça confere uma base filosófica sólida ao Fome Zero: a prioridade do programa é alimentar os famintos, transferindo recursos para os mais necessitados dos brasileiros. Questionável não é a filosofia. Mas o diagnóstico e as políticas do programa.

Primeiro, o diagnóstico. A tabela mostra o número de miseráveis segundo diferentes linhas de pobreza (isto é, o número de brasileiros na segunda coluna que vivem com uma renda menor do que a especificada na primeira coluna). Em 2001, existiam 50 milhões de brasileiros com uma renda menor do que R$ 80 por mês. Ignorando os custos operacionais, a entrega de um cartão magnético de R$ 50 por mês para esses 50 milhões de miseráveis custaria ao governo 30 bilhões por ano, isto é, 12% da receita bruta do Tesouro Nacional em 2002. A dificuldade de mobilizar recursos tão altos indica a necessidade de um diagnóstico mais preciso.

Entre os 50 milhões de miseráveis, muitos não passam fome. Se a prioridade é acabar com ela, é preciso identificar os desnutridos. O uso de medidas como as da tabela ao lado para distribuir o cartão do Fome Zero é problemático. Essas medidas não contêm informação sobre o que as pessoas de fato consomem. A informação sobre a renda é baseada em pesquisas domiciliares que subestimam a renda recebida e a renda estimada nas contas nacionais. Além disso, o elo entre a renda e o consumo também é mais fraco do que em geral se acredita. Medidas de desnutrição em relatórios do ministério da saúde sugerem que o número de subnutridos corresponde a 7% da população brasileira, isto é, anda por volta de 12 milhões de pessoas.

A linha de pobreza do IPEA também resulta num número de indigentes bem menor que os 50 milhões alardeados pelos arautos do PT. Segundo o IPEA, em 2001, 15% da população brasileira era extremamente pobre. A porcentagem dos indigentes na população do Nordeste (30%) era três vezes maior que a média da porcentagem de indigentes na população das outras regiões do país. Este cálculo abre a alternativa de se limitar o Fome Zero ao Nordeste.

Enquanto os pagamentos do Fome Zero se limitarem a poucos municípios pobres, será fácil verificar se o cartão chega de fato a quem mais precisa dele. À medida que o programa se expandir, os vazamentos se tornarão comuns enquanto faltar precisão ao diagnóstico do programa. A definição atual contém erros e mal-entendidos. Um desvio que cria confusão desnecessária é o uso equivocado de uma linha de pobreza definida em dólares e da taxa de câmbio corrente no lugar da paridade do poder de compra para a conversão do real em dólar. O governo não pode fugir à necessidade de definir com clareza uma linha oficial de indigência ou desnutrição.

Tema tão sério quanto o diagnóstico da fome é a escolha das medidas para acabar com ela. O programa contém uma longa lista de políticas estruturais, específicas e locais. Mas já virou sinônimo do cupom de alimentação. O cartão magnético do Fome Zero é muito parecido com os food stamps nos EUA. Os críticos argumentam que este tipo de programa cria dependência. Um estudo da Heritage Foundation afirma que o pobre americano que usa o cupom não consegue se desligar dele antes de oito anos. O benefício também vaza para quem não precisa de ajuda para comprar alimentos. Em programas pilotos nos quais as famílias americanas tiveram que documentar a renda, a aprovação de crianças para almoço grátis caiu 21 %. Acabar com os food stamps é missão impossível. Mas como o americano passa fome e anda gordo, o governo agora terá de alocar recursos para a educação nutricional dos indigentes.

Isto é lá. Aqui a realidade de Acauã e Guaribas no Piauí não deixa dúvidas que o Fome Zero é necessário em alguns municípios muito pobres do Nordeste. Mesmo assim o conteúdo do programa merece discussão.

Segundo o Estado de S. Paulo de 2/3, um dono da mercearia em Acauã observou que suas vendas dependem do dinheiro dos aposentados até o dia 20 de cada mês. Depois do dinheiro do Bolsa-Escola e do Bolsa-Renda. E agora dos pagamentos do Fome Zero. A integração da administração dos inúmeros programas que hoje existem no Brasil poderia evitar o erro de dar benefícios múltiplos às mesmas famílias enquanto outras são excluídas. Integração difícil enquanto os programas sociais se dividirem entre o ministério da Benedita e o programa do Graziano e não existir diálogo entre os dois.

Transferências monetárias que exigem contrapartida do beneficiado - como freqüência assídua à escola ou a postos de saúde, ou a participação em trabalhos comunitários - têm vantagens sobre o Fome Zero. Elas aumentam o capital humano dos pobres e impedem que ricos e remediados se aproveitem delas.

Vilarejos muito pobres são também vilarejos de gente ocupada em trabalhos de baixíssima produtividade. Melhor seria que o Fome Zero viesse combinado a um programa gerador de trabalho e exigisse uma contrapartida dos beneficiados.

Enquanto isso a polícia federal colocou o prefeito de Acauã sob suspeita de envolvimento com o crime organizado. Para viver dignamente, os moradores de Acauã precisam de atividades produtivas, esgotos, e melhores líderes. O Fome Zero tapa o sol com a peneira. O que falta é emprego.

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