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Dignidade e segurança sob o mesmo teto
Por Maria Eduarda Mattar - RITS   13 de maio de 2003
Existe um movimento cada vez maior para fazer com que o acesso à moradia
adequada e digna seja visto por todos e todas como um direito humano. Por
quê? Em primeiro lugar, por causa do bom senso: ter uma casa representa
segurança psicológica e física para o indivíduo e, assim, torna-se um dos
fatores necessários para o pleno desenvolvimento humano das pessoas. É o que
destaca Regina Helena Felice, coordenadora da ONG Moradia e Cidadania no Rio
de Janeiro: "Ter acesso a um lugar para morar é fundamental. É, na verdade,
uma questão de segurança psicológica, de dignidade. Em todas as classes
sociais, qualquer pessoa almeja ter uma casa que seja sua, independente da
forma, do tamanho", diz.
Segundo, porque está previsto e garantido na legislação brasileira, mais especificamente na Constituição. O artigo 6º diz que são direitos sociais do indivíduo "a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". E, no artigo 5º, parágrafo 2º, está previsto que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Ou seja, aí estão incluídos os acordos internacionais que dizem respeito aos direitos humanos do qual o país é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976 e a Agenda Habitat de 1996. "É preciso que as pessoas entendam que se trata de um direito fundamental, como a alimentação é a integridade física, previsto na Constituição", ressalta Nelson Saule Jr.
Saule é o relator brasileiro para o Direito Humano à Moradia Adequada, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc). Recentemente, a Plataforma produziu o Relatório Brasileiro sobre Dhesc 2003, para ser apresentado às Nações Unidas, fazendo um balanço da situação que cada relator - o grupo foi nomeado em outubro de 2002 - pôde averiguar neste primeiro ciclo de trabalho. O documento traz a constatação de que o déficit habitacional no Brasil, hoje, é de mais de 6,5 milhões de moradias, o que equivale a 14,8% do total dos domicílios particulares permanentes. Ou seja: falta construir no país 6,5 milhões de lugares para as pessoas morarem. A estimativa, também do relatório, é de que esta situação atinja cerca de 20 milhões de brasileiros.
Saule ressalta que neste cálculo não estão incluídos os domicílios inadequados - aqueles que necessitam de reparos, ampliação ou da construção de uma melhor infra-estrutura de serviços. "A inadequação de moradias reflete a qualidade de vida dos moradores em relação às condições em que moram", esclarece o relator. Existiriam atualmente mais de 16 milhões de domicílios inadequados no país.
Não basta ter teto. É preciso infra-estrutura
O número de inadequação de moradias faz lembrar uma outra discussão necessária para que o conceito de direito humano à moradia adequada seja compreendido de forma plena: não basta dar o teto, a construção; é preciso haver uma infra-estrutura básica que sirva aos domicílios. Isto inclui: saneamento básico, abastecimento de água, transportes, postos de saúde, boa estrutura fundiária etc. Por que estes fatores são necessários? Porque sem a maioria destas condições uma moradia não pode ser considerada, necessariamente, digna. "São fatores de extrema importância para a adequação de uma moradia", reforça Saule.
Segundo Grazia de Grazia, do Fórum Nacional de Reforma Urbana, o motivo para a grande quantidade de domicílios em condições inadequadas é simples: "Com a falta de uma moradia, as pessoas ocupam o que está mais acessível, o que nem sempre é o mais adequado". A ocupação e os assentamentos nas cidades, mencionados por Grazia, inserem a discussão sobre acesso a moradias dignas em um âmbito maior: o debate sobre as conseqüências das condições precárias e inadequadas dos domicílios para os municípios e para os indivíduos. Considerando que normalmente as pessoas se voltam para áreas de pouco interesse imobiliário, na maioria das vezes ocupam encostas, beiras de rio e áreas de mangues, tornando o risco - físico, de saúde etc - a primeira conseqüência a gerar preocupação.
Depois, surge em cena a possibilidade de danos ao meio ambiente, uma vez que as casas, na maioria das vezes, não têm sistemas apropriados de esgotamento sanitário. Isso está relacionado também com eventuais problemas de saúde para os moradores, tanto dos domicílios construídos de modo inadequado quanto para aqueles em seu entorno. Existe também o risco de as moradias, dependendo do modo como forem construídas, oferecerem risco aos seus próprios moradores, caso não sejam bem estruturadas. Estas são apenas algumas das diversas possíveis conseqüências. É bom lembrar que a questão do acesso à moradia digna é tratada, em grande parte, abordando-se os casos das cidades, pois é nelas que está o maior contingente de pessoas, e o adensamento populacional faz as conseqüências maléficas serem mais evidentes. No entanto, nas áreas rurais, o acesso à moradia adequada também precisa ser incrementado - ou melhor: dividido.
Fundamentos para um maior acesso
Quais seriam as formas de solucionar rapidamente essa realidade que alija milhões de brasileiros? Existem algumas possibilidades. Uma opção por onde se poderia começar é tornar o direito humano à moradia digna e adequada algo mais conhecido das pessoas, pelo qual elas possam lutar e o qual possam defender. "Esse direito precisa ser publicizado e as pessoas devem fazê-lo valer", diz Grazia de Grazia. Também é desta opinião Rodrigo Lemos Teixeira, gerente na Coordenação Nacional da ONG Moradia e Cidadania. Para ele, "é preciso lançar luz sobre o direito. Falta abordar mais o assunto e mostrar que tudo faz parte do mesmo ciclo; precisam ser considerados em conjunto".
Nelson Saule Jr. defende que, além disso, é necessário modificar leis e regras de produção habitacional. "A legislação restringe a habitação popular nas áreas que de fato têm infra-estrutura para receber novos domicílios, ou seja, nas áreas mais urbanizadas. Assim, as pessoas acabam construindo, em excesso, em locais inadequados, sem boas condições", ressalta. Para o relator, seria crucial criar novas possibilidades de produção de habitação popular e legalizar os assentamos informais que existem atualmente nas áreas urbanas: "É melhor legalizar do que construir novos conjuntos habitacionais" , diz.
Ele e Grazia defendem a implementação dos planos diretores das cidades - o que está previsto no Estatuto da Cidade (lei 10.257, de 10 de julho de 2001) -, que têm a função de vincular as funções da propriedade às diretrizes e aos objetivos da política urbana estabelecida democraticamente no município. Na prática, o plano diretor estabelece que áreas da cidade poderão ser ocupadas, quais poderão receber construções e uma série de outras definições que dizem respeito às exigências fundamentais de ordenação da cidade, respeitando e tendo em mente a função social da propriedade. Os municípios têm até cinco anos, a contar da data de aprovação do Estatuto da Cidade, para elaborarem ou adequarem seus planos diretores.
Outra demanda identificada é a melhoria das regras de financiamento habitacional ou a criação de novos, que atendam de fato às pessoas que mais precisam. Na maioria das vezes, quem de fato está em situação irregular, ocupando áreas inadequadamente ou sem casa nenhuma, são as pessoas das classes mais baixas. E são justamente estas as que têm mais dificuldades para conseguir financiamento formal para a habitação. "No caso da Caixa Econômica Federal, o certo seria que 60% do dinheiro fosse destinado à habitação popular. E isso não está sendo cumprido. Os recursos têm ficado sempre canalizados para quem tem renda", lembra Saule. Já Grazia lembra que, com isso, falta financiamento justamente para a classe que é mais atingida pelo déficit habitacional.
Regina Felice, da ONG Moradia e Cidadania, concorda, mas lembra que é importante ajudar as pessoas a conseguirem sua moradia da forma menos assistencialista possível. "Sou contra dar de graça, salvo em casos de emergência. Tem que haver uma contrapartida, até para as pessoas valorizarem. Acho que deve-se dar condições para as pessoas conseguirem o que querem - aliás, não só na questão da moradia".
Segundo, porque está previsto e garantido na legislação brasileira, mais especificamente na Constituição. O artigo 6º diz que são direitos sociais do indivíduo "a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". E, no artigo 5º, parágrafo 2º, está previsto que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Ou seja, aí estão incluídos os acordos internacionais que dizem respeito aos direitos humanos do qual o país é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976 e a Agenda Habitat de 1996. "É preciso que as pessoas entendam que se trata de um direito fundamental, como a alimentação é a integridade física, previsto na Constituição", ressalta Nelson Saule Jr.
Saule é o relator brasileiro para o Direito Humano à Moradia Adequada, da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc). Recentemente, a Plataforma produziu o Relatório Brasileiro sobre Dhesc 2003, para ser apresentado às Nações Unidas, fazendo um balanço da situação que cada relator - o grupo foi nomeado em outubro de 2002 - pôde averiguar neste primeiro ciclo de trabalho. O documento traz a constatação de que o déficit habitacional no Brasil, hoje, é de mais de 6,5 milhões de moradias, o que equivale a 14,8% do total dos domicílios particulares permanentes. Ou seja: falta construir no país 6,5 milhões de lugares para as pessoas morarem. A estimativa, também do relatório, é de que esta situação atinja cerca de 20 milhões de brasileiros.
Saule ressalta que neste cálculo não estão incluídos os domicílios inadequados - aqueles que necessitam de reparos, ampliação ou da construção de uma melhor infra-estrutura de serviços. "A inadequação de moradias reflete a qualidade de vida dos moradores em relação às condições em que moram", esclarece o relator. Existiriam atualmente mais de 16 milhões de domicílios inadequados no país.
Não basta ter teto. É preciso infra-estrutura
O número de inadequação de moradias faz lembrar uma outra discussão necessária para que o conceito de direito humano à moradia adequada seja compreendido de forma plena: não basta dar o teto, a construção; é preciso haver uma infra-estrutura básica que sirva aos domicílios. Isto inclui: saneamento básico, abastecimento de água, transportes, postos de saúde, boa estrutura fundiária etc. Por que estes fatores são necessários? Porque sem a maioria destas condições uma moradia não pode ser considerada, necessariamente, digna. "São fatores de extrema importância para a adequação de uma moradia", reforça Saule.
Segundo Grazia de Grazia, do Fórum Nacional de Reforma Urbana, o motivo para a grande quantidade de domicílios em condições inadequadas é simples: "Com a falta de uma moradia, as pessoas ocupam o que está mais acessível, o que nem sempre é o mais adequado". A ocupação e os assentamentos nas cidades, mencionados por Grazia, inserem a discussão sobre acesso a moradias dignas em um âmbito maior: o debate sobre as conseqüências das condições precárias e inadequadas dos domicílios para os municípios e para os indivíduos. Considerando que normalmente as pessoas se voltam para áreas de pouco interesse imobiliário, na maioria das vezes ocupam encostas, beiras de rio e áreas de mangues, tornando o risco - físico, de saúde etc - a primeira conseqüência a gerar preocupação.
Depois, surge em cena a possibilidade de danos ao meio ambiente, uma vez que as casas, na maioria das vezes, não têm sistemas apropriados de esgotamento sanitário. Isso está relacionado também com eventuais problemas de saúde para os moradores, tanto dos domicílios construídos de modo inadequado quanto para aqueles em seu entorno. Existe também o risco de as moradias, dependendo do modo como forem construídas, oferecerem risco aos seus próprios moradores, caso não sejam bem estruturadas. Estas são apenas algumas das diversas possíveis conseqüências. É bom lembrar que a questão do acesso à moradia digna é tratada, em grande parte, abordando-se os casos das cidades, pois é nelas que está o maior contingente de pessoas, e o adensamento populacional faz as conseqüências maléficas serem mais evidentes. No entanto, nas áreas rurais, o acesso à moradia adequada também precisa ser incrementado - ou melhor: dividido.
Fundamentos para um maior acesso
Quais seriam as formas de solucionar rapidamente essa realidade que alija milhões de brasileiros? Existem algumas possibilidades. Uma opção por onde se poderia começar é tornar o direito humano à moradia digna e adequada algo mais conhecido das pessoas, pelo qual elas possam lutar e o qual possam defender. "Esse direito precisa ser publicizado e as pessoas devem fazê-lo valer", diz Grazia de Grazia. Também é desta opinião Rodrigo Lemos Teixeira, gerente na Coordenação Nacional da ONG Moradia e Cidadania. Para ele, "é preciso lançar luz sobre o direito. Falta abordar mais o assunto e mostrar que tudo faz parte do mesmo ciclo; precisam ser considerados em conjunto".
Nelson Saule Jr. defende que, além disso, é necessário modificar leis e regras de produção habitacional. "A legislação restringe a habitação popular nas áreas que de fato têm infra-estrutura para receber novos domicílios, ou seja, nas áreas mais urbanizadas. Assim, as pessoas acabam construindo, em excesso, em locais inadequados, sem boas condições", ressalta. Para o relator, seria crucial criar novas possibilidades de produção de habitação popular e legalizar os assentamos informais que existem atualmente nas áreas urbanas: "É melhor legalizar do que construir novos conjuntos habitacionais" , diz.
Ele e Grazia defendem a implementação dos planos diretores das cidades - o que está previsto no Estatuto da Cidade (lei 10.257, de 10 de julho de 2001) -, que têm a função de vincular as funções da propriedade às diretrizes e aos objetivos da política urbana estabelecida democraticamente no município. Na prática, o plano diretor estabelece que áreas da cidade poderão ser ocupadas, quais poderão receber construções e uma série de outras definições que dizem respeito às exigências fundamentais de ordenação da cidade, respeitando e tendo em mente a função social da propriedade. Os municípios têm até cinco anos, a contar da data de aprovação do Estatuto da Cidade, para elaborarem ou adequarem seus planos diretores.
Outra demanda identificada é a melhoria das regras de financiamento habitacional ou a criação de novos, que atendam de fato às pessoas que mais precisam. Na maioria das vezes, quem de fato está em situação irregular, ocupando áreas inadequadamente ou sem casa nenhuma, são as pessoas das classes mais baixas. E são justamente estas as que têm mais dificuldades para conseguir financiamento formal para a habitação. "No caso da Caixa Econômica Federal, o certo seria que 60% do dinheiro fosse destinado à habitação popular. E isso não está sendo cumprido. Os recursos têm ficado sempre canalizados para quem tem renda", lembra Saule. Já Grazia lembra que, com isso, falta financiamento justamente para a classe que é mais atingida pelo déficit habitacional.
Regina Felice, da ONG Moradia e Cidadania, concorda, mas lembra que é importante ajudar as pessoas a conseguirem sua moradia da forma menos assistencialista possível. "Sou contra dar de graça, salvo em casos de emergência. Tem que haver uma contrapartida, até para as pessoas valorizarem. Acho que deve-se dar condições para as pessoas conseguirem o que querem - aliás, não só na questão da moradia".