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Leis de papel
Por ISTO É   13 de maio de 2003
Para mostrar a importância que reserva ao assunto, quando tomou posse o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva transformou em ministério a Secretaria
Nacional dos Direitos Humanos. Colocou no cargo o amigo Nilmário Miranda,
jornalista, 55 anos, ex-deputado federal do PT de Minas Gerais, que conheceu
na pele - como preso político da ditadura - o que é não ter direitos. Em
1972, Nilmário foi torturado pelo atual chefe do serviço de inteligência da
Polícia Civil paulista, o delegado Aparecido Laertes Calandra. Hoje, depois
de lutar no Congresso Nacional para aprovar leis que definam claramente os
direitos universais de cada cidadão, está encarregado de implantar a
legislação em vigor, mas que, segundo ele, só existe no papel. Com o fim da
ditadura e a redemocratização do País, após a Constituição de 1988, Nilmário
constatou que o leque de direitos desrespeitados no Brasil é maior do que se
imaginava. No País nascem todos os anos cerca de 700 mil pessoas que nem
mesmo chegam a ser consideradas formalmente cidadãs porque não têm acesso à
certidão de nascimento. Vão morrer assim. "Estão fora da Previdência,
engrossam o exército de 19 milhões de analfabetos e fazem parte dos 25
milhões de miseráveis. São alvo dos fazendeiros que caçam esta gente para o
trabalho escravo", lembra Nilmário. Incorporar estes brasileiros às práticas
da cidadania será o grande desafio do ministro. Ele reconhece que durante o
mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso a questão dos direitos
humanos teve avanços, mas o modelo econômico atrapalhou a implantação.
Nilmário também sabe que nas delegacias brasileiras a tortura continua sendo
uma endemia praticada por maus policiais e a violência que vem assustando o
País não é só caso de polícia e lei. Nesta entrevista a ISTO É ele fala do
conceito ampliado de diretos humanos e do trabalho gigantesco e,
infelizmente, demorado que tem pela frente.
Isto É - Qual a maior causa da violência no País?
Nilmário - São as profundas desigualdades brasileiras, a concentração da terra e a invasão das terras indígenas. Mas, sem dúvida, a violência do dia-a-dia está diretamente ligada ao crime organizado, que pode ser de fazendeiros que lideram milícias ou dos traficantes. Nas cidades, ele atua no tráfico de drogas porque movimenta mais dinheiro. No campo, é pago por fazendeiros na briga pela terra. Todos esses grupos são sempre integrados por policiais e ex-policiais, o que mostra uma infiltração permanente de criminosos no aparelho do Estado. Eles começam como justiceiros, viram pistoleiros de aluguel, passam a proteger grupos criminosos, traficantes, e usam até o poder de polícia para intimidar. Depois, passam ao roubo de cargas e ao tráfico de armas. Matam desde trabalhadores rurais por R$ 50 até traficantes de grupos rivais para proteger grupos amigos. Fazem ação de polícia "seletiva". Em Timbaúba, Pernambuco, tinha até um grupo de extermínio que desfilava no Sete de Setembro. Alguns foram presos, mas já existem sucessores.
Isto É - Como o crime organizado consegue atuar em tantas frentes?
Nilmário - Os criminosos estão interligados. O tráfico de drogas é vinculado ao tráfico de armas, ao roubo de cargas, aos sequestros e ao tráfico de adolescentes. No Brasil, conhecemos pelo menos 130 rotas internacionais e 240 nacionais de tráfico de seres humanos. O que se observa nessas rotas é a interação com todos os crimes pesados. A violência urbana é resultado do crime organizado, inclusive da "lavagem" de dinheiro. Como a razão do crime é o dinheiro e esse dinheiro também é oriundo da corrupção, ocorre o conluio de parte dos policiais, promotores, juízes, políticos, guardas rodoviários, aduaneiros e jornalistas, como aconteceu no Espírito Santo, onde havia uma grande rede de corrupção. Para "lavar" R$ 50 milhões por mês, o crime organizado monta empresas laranjas e consegue acesso fácil aos bancos para mandar o dinheiro ilegalmente para o Exterior. E não se pode esquecer dos grupos de extermínio, que estão presentes em pelo menos 14 Estados.
Isto É - Qual desses aspectos mais o preocupa ?
Nilmário - Há o conflito agrário, que envolve até 100 mil acampados no País, o conflito indígena, onde as terras foram invadidas por fazendeiros, madeireiros, garimpeiros - e, em menor escala, o conflito que ameaça as comunidades remanescentes dos quilombos. Juntando-se as milícias armadas travestidas de empresas de segurança, tem-se aí um quadro onde tudo redunda em violência. A solução destes problemas cabe aos ministérios específicos. Mas o que fazemos aqui é tentar descobrir onde ela pode eclodir e atuar antes para retirar a violência do conflito. O conflito é inerente em uma sociedade de tantas desigualdades como a nossa. Mas a violência não.
Isto É - Como evitar a violência decorrente do conflito?
Nilmário - Abrindo o diálogo, como fizemos no casos dos índios tuxás, na Bahia. Lá, colocamos a Chesf e os índios para negociar. No campo, se conseguirmos desarmar as milícias, haverá clima para o diálogo entre empresários e trabalhadores.
Isto É - O sr. é a favor da proibição da venda de armas?
Nilmário - Claro. Tem que proibir a venda e criminalizar o porte ilegal. Por causa disto, o número de assassinatos nas periferias urbanas é muito alto e metade destas mortes ocorre por motivo fútil. São conflitos banais, resolvidos à bala por causa da pouca presença do Estado. Na periferia, o grande lazer é o boteco, a cachaça, onde a maioria das mortes ocorre de sexta-feira à noite a domingo à tarde. Juntando cachaça com armas e a falta de opção de lazer e outras atividades comunitárias como esportes, por exemplo, tem-se a receita da violência. Diadema, em São Paulo, tinha um dos maiores índices de morte por 100 mil habitantes do mundo. Bastou uma lei seca fechando os botecos à meia-noite de sexta a domingo e o número de mortes caiu pela metade.
Isto É - Mas este fenômeno ocorre em qualquer periferia do País.
Nilmário - Verdade. Mas com algumas diferenças importantes. A periferia de Brasília, por exemplo, é a Baixada fluminense de 20 anos atrás. Lá a pouca presença do Estado, principalmente com a falta de segurança, agrava as coisas. Em São Paulo e Rio de Janeiro, temos bairros de igual pobreza, mas com taxas de violência muito baixas, de Primeiro Mundo, porque foram criados grupos de jovens, associações comunitárias e de bairro. Ou seja: uma sociedade organizada e o Estado presente. O pior é que a violência urbana no Brasil hoje é um fenômeno que atinge jovens de 15 a 24 anos, seja como autores, seja como vítimas de crimes, um quadro que se agravou nos últimos 20 anos por causa da crise social.
Isto É - Então, os jovens são o maior grupo de risco da violência?
Nilmário - O Brasil tem oito milhões de adolescentes que chamo grupo de altíssimo risco. Com baixa escolaridade, reflexo do fracasso da escola pública, está há pelo menos três anos fora dos estudos e renda muito pequena. É o mais vulnerável, no qual mais crescem os índices de doenças sexualmente transmissíveis, Aids, gravidez precoce e uso de drogas. É aí que cresce mais a violência, de onde sai um exército inesgotável para o crime organizado que usa adolescentes cada vez mais novos para fazer as piores tarefas. É um grupo invisível e anônimo. Só é visto com uma arma na mão. Se tiverem uma alternativa, saem do crime.
Isto É - Baixar a idade legal para 16 anos ajuda?
Nilmário - De forma alguma. O Brasil tem uma lei avançada, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Estamos tentando incluir a disciplina nos cursos das universidades para educar quem vai operar o Direito, como advogados, defensores públicos, promotores, procuradores, delegados e juízes. Quando estiver inteiramente implantado, o Estatuto será eficaz. Se um menino é usuário de crack, faz pequenos furtos para comprar drogas, tem direito e deve viver em liberdade assistida. Não precisa ser internado ou preso. Pode ser acompanhado na sua comunidade. Sua pena deve ser estudar e trabalhar em alguns casos. Isto dá certo porque o grau de reinserção é de 80%.
Isto É - O que fazer com o modelo das Febems?
Nilmário - Implodir imediatamente. Construir unidades para até 100 jovens, de acordo com os delitos cometidos. Não pode é misturar quem cometeu pequenos delitos com os reincidentes, que estão em outros estágios de criminalidade. O estatuto prevê, além da liberdade assistida, locais onde os menores ficarão em semi-liberdade. Os que precisarem internação vão para estabelecimentos menores, com atendimento individualizado.
Isto É - No caso da violência brasileira, o programa tolerância zero, que prevê prisão por qualquer delito, não seria uma solução?
Nilmário - Não é. No caso dos EUA, eles prendem por qualquer delito porque têm dinheiro para isto. Gastam US$ 50 bilhões por ano com os presos. Qual país do mundo pode gastar isso? Prender, misturar na mesma prisão gente com penas de seis meses a 50 anos não é a solução. E os resultados humanos?
Isto É - Então, o conceito mais moderno de direitos humanos hoje é ter cidadania?
Nilmário - O que eu chamo de cidadania é tirar as leis do papel. Direito humano econômico, o que é? É o trabalho, moradia adequada, alimentação. Direito humano social é a Previdência, a saúde, assistência social como direito e não como troca de voto, clientelismo. Direito humano cultural é ter escola fundamental para todos, o ensino médio, o direito à cultura, ter acesso aos bens do progresso científico. Ter direito ao mínimo vital. Trabalho escravo, trabalho infantil, tudo isto agride o mínimo vital do ser humano. Direitos humanos são direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais. Direitos civis e políticos estão bem resolvidos no plano das leis, no papel, mas têm baixa implementação. O resto será uma conquista da sociedade. Há milhões de brasileiros sem nenhum documento, não foram registrados, vão passar a vida inteira sem nenhum documento e morrer sem atestado de óbito. Eles não existem civilmente. Isso precisa mudar.
Isto É - O discurso puramente humanitário também está desgastado?
Nilmário - De modo algum. Essa é a filosofia no Brasil. A sociedade brasileira tem uma violência social forte, mas não tem componentes de ódio religioso ou racial nem ambições imperialistas. Você tem presídios que funcionam, mesmo sem dinheiro. Funcionam porque têm reinserção alta. A maioria não dá certo porque está superlotada, sem trabalho, sem educação, sem esporte, sem visitas. Assim, só dá confusão. Onde tem trabalho, há reinserção. Aqui mesmo no prédio do Ministério da Justiça há mais de 70 ex-presidiários que viraram funcionários públicos, mas estão em regime semi-aberto, e têm excelente rendimento. Isso mostra que nosso sistema funciona. O projeto como um todo prevê prisões federais de alta segurança para os criminosos perigosos, aumento dos presídios semi-abertos e prisões albergues. O objetivo da prisão para nós não é só a punição, é a reinserção. Todos que defendem pena dura para crimes comuns sempre discordam desta opção quando descobrem um parente criminoso.
Isto É - Um fazendeiro que tem trabalhador escravo não é uma situação mais grave do que o plantador de maconha que perde a terra por isto?
Nilmário - Para mim dá na mesma. Deveriam ter o mesmo tratamento. Há uma emenda constitucional do então senador Ademir Andrade que prevê a perda do bem, sem indenização. Já foi aprovada no Senado, só falta a Câmara. Quando isso ocorrer, vai acabar o trabalho escravo. Este ano, como aumentamos a repressão, vamos libertar pelo menos 25 mil pessoas.
Isto É - A lei, então, não acaba com a violência?
Nilmário - Não acaba porque ela não é aplicada para todos. Mas não vamos reduzir a importância das leis. Quem viveu na ditadura sabe da importância de se ter leis.
Isto É - Mas, mesmo com as leis, a violência no Brasil parece que aumenta.
Nilmário - Isto é porque a nossa democracia não enfrentou o problema da distribuição da renda e do poder no Brasil. Isso aconteceu em toda a América Latina, que entrou na democracia formal, mas sem acesso aos direitos humanos, econômicos e sociais.
Isto É - Isto mostra que, para milhões, as leis que falam de cidadania não existem?
Nilmário - É verdade. Isso mostra que só a lei não basta. O Estado ou o poder público tem que estar presente na vida das pessoas. Por exemplo: o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a existência dos conselhos tutelares em todos os cinco mil municípios. Mas só existem três mil, a maioria pró-forma. Temos que ter este instrumento em todas as cidades. O Brasil já resolveu o problema das liberdades políticas. Aqui ninguém é preso por causa de suas opiniões e nosso sistema legal é super-avançado. O problema é a sua implementação. Tortura, por exemplo, é crime hediondo, mas ainda é disseminada em todas as delegacias. Ainda não temos na prática o amplo direito de defesa e um terço da população não tem acesso à Justiça. Vive em pobreza tão grande que não tem acesso ao direito de votar e termina vendendo voto, o que é uma prova da inexistência de direito humano vital.
Isto É - Qual a maior causa da violência no País?
Nilmário - São as profundas desigualdades brasileiras, a concentração da terra e a invasão das terras indígenas. Mas, sem dúvida, a violência do dia-a-dia está diretamente ligada ao crime organizado, que pode ser de fazendeiros que lideram milícias ou dos traficantes. Nas cidades, ele atua no tráfico de drogas porque movimenta mais dinheiro. No campo, é pago por fazendeiros na briga pela terra. Todos esses grupos são sempre integrados por policiais e ex-policiais, o que mostra uma infiltração permanente de criminosos no aparelho do Estado. Eles começam como justiceiros, viram pistoleiros de aluguel, passam a proteger grupos criminosos, traficantes, e usam até o poder de polícia para intimidar. Depois, passam ao roubo de cargas e ao tráfico de armas. Matam desde trabalhadores rurais por R$ 50 até traficantes de grupos rivais para proteger grupos amigos. Fazem ação de polícia "seletiva". Em Timbaúba, Pernambuco, tinha até um grupo de extermínio que desfilava no Sete de Setembro. Alguns foram presos, mas já existem sucessores.
Isto É - Como o crime organizado consegue atuar em tantas frentes?
Nilmário - Os criminosos estão interligados. O tráfico de drogas é vinculado ao tráfico de armas, ao roubo de cargas, aos sequestros e ao tráfico de adolescentes. No Brasil, conhecemos pelo menos 130 rotas internacionais e 240 nacionais de tráfico de seres humanos. O que se observa nessas rotas é a interação com todos os crimes pesados. A violência urbana é resultado do crime organizado, inclusive da "lavagem" de dinheiro. Como a razão do crime é o dinheiro e esse dinheiro também é oriundo da corrupção, ocorre o conluio de parte dos policiais, promotores, juízes, políticos, guardas rodoviários, aduaneiros e jornalistas, como aconteceu no Espírito Santo, onde havia uma grande rede de corrupção. Para "lavar" R$ 50 milhões por mês, o crime organizado monta empresas laranjas e consegue acesso fácil aos bancos para mandar o dinheiro ilegalmente para o Exterior. E não se pode esquecer dos grupos de extermínio, que estão presentes em pelo menos 14 Estados.
Isto É - Qual desses aspectos mais o preocupa ?
Nilmário - Há o conflito agrário, que envolve até 100 mil acampados no País, o conflito indígena, onde as terras foram invadidas por fazendeiros, madeireiros, garimpeiros - e, em menor escala, o conflito que ameaça as comunidades remanescentes dos quilombos. Juntando-se as milícias armadas travestidas de empresas de segurança, tem-se aí um quadro onde tudo redunda em violência. A solução destes problemas cabe aos ministérios específicos. Mas o que fazemos aqui é tentar descobrir onde ela pode eclodir e atuar antes para retirar a violência do conflito. O conflito é inerente em uma sociedade de tantas desigualdades como a nossa. Mas a violência não.
Isto É - Como evitar a violência decorrente do conflito?
Nilmário - Abrindo o diálogo, como fizemos no casos dos índios tuxás, na Bahia. Lá, colocamos a Chesf e os índios para negociar. No campo, se conseguirmos desarmar as milícias, haverá clima para o diálogo entre empresários e trabalhadores.
Isto É - O sr. é a favor da proibição da venda de armas?
Nilmário - Claro. Tem que proibir a venda e criminalizar o porte ilegal. Por causa disto, o número de assassinatos nas periferias urbanas é muito alto e metade destas mortes ocorre por motivo fútil. São conflitos banais, resolvidos à bala por causa da pouca presença do Estado. Na periferia, o grande lazer é o boteco, a cachaça, onde a maioria das mortes ocorre de sexta-feira à noite a domingo à tarde. Juntando cachaça com armas e a falta de opção de lazer e outras atividades comunitárias como esportes, por exemplo, tem-se a receita da violência. Diadema, em São Paulo, tinha um dos maiores índices de morte por 100 mil habitantes do mundo. Bastou uma lei seca fechando os botecos à meia-noite de sexta a domingo e o número de mortes caiu pela metade.
Isto É - Mas este fenômeno ocorre em qualquer periferia do País.
Nilmário - Verdade. Mas com algumas diferenças importantes. A periferia de Brasília, por exemplo, é a Baixada fluminense de 20 anos atrás. Lá a pouca presença do Estado, principalmente com a falta de segurança, agrava as coisas. Em São Paulo e Rio de Janeiro, temos bairros de igual pobreza, mas com taxas de violência muito baixas, de Primeiro Mundo, porque foram criados grupos de jovens, associações comunitárias e de bairro. Ou seja: uma sociedade organizada e o Estado presente. O pior é que a violência urbana no Brasil hoje é um fenômeno que atinge jovens de 15 a 24 anos, seja como autores, seja como vítimas de crimes, um quadro que se agravou nos últimos 20 anos por causa da crise social.
Isto É - Então, os jovens são o maior grupo de risco da violência?
Nilmário - O Brasil tem oito milhões de adolescentes que chamo grupo de altíssimo risco. Com baixa escolaridade, reflexo do fracasso da escola pública, está há pelo menos três anos fora dos estudos e renda muito pequena. É o mais vulnerável, no qual mais crescem os índices de doenças sexualmente transmissíveis, Aids, gravidez precoce e uso de drogas. É aí que cresce mais a violência, de onde sai um exército inesgotável para o crime organizado que usa adolescentes cada vez mais novos para fazer as piores tarefas. É um grupo invisível e anônimo. Só é visto com uma arma na mão. Se tiverem uma alternativa, saem do crime.
Isto É - Baixar a idade legal para 16 anos ajuda?
Nilmário - De forma alguma. O Brasil tem uma lei avançada, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Estamos tentando incluir a disciplina nos cursos das universidades para educar quem vai operar o Direito, como advogados, defensores públicos, promotores, procuradores, delegados e juízes. Quando estiver inteiramente implantado, o Estatuto será eficaz. Se um menino é usuário de crack, faz pequenos furtos para comprar drogas, tem direito e deve viver em liberdade assistida. Não precisa ser internado ou preso. Pode ser acompanhado na sua comunidade. Sua pena deve ser estudar e trabalhar em alguns casos. Isto dá certo porque o grau de reinserção é de 80%.
Isto É - O que fazer com o modelo das Febems?
Nilmário - Implodir imediatamente. Construir unidades para até 100 jovens, de acordo com os delitos cometidos. Não pode é misturar quem cometeu pequenos delitos com os reincidentes, que estão em outros estágios de criminalidade. O estatuto prevê, além da liberdade assistida, locais onde os menores ficarão em semi-liberdade. Os que precisarem internação vão para estabelecimentos menores, com atendimento individualizado.
Isto É - No caso da violência brasileira, o programa tolerância zero, que prevê prisão por qualquer delito, não seria uma solução?
Nilmário - Não é. No caso dos EUA, eles prendem por qualquer delito porque têm dinheiro para isto. Gastam US$ 50 bilhões por ano com os presos. Qual país do mundo pode gastar isso? Prender, misturar na mesma prisão gente com penas de seis meses a 50 anos não é a solução. E os resultados humanos?
Isto É - Então, o conceito mais moderno de direitos humanos hoje é ter cidadania?
Nilmário - O que eu chamo de cidadania é tirar as leis do papel. Direito humano econômico, o que é? É o trabalho, moradia adequada, alimentação. Direito humano social é a Previdência, a saúde, assistência social como direito e não como troca de voto, clientelismo. Direito humano cultural é ter escola fundamental para todos, o ensino médio, o direito à cultura, ter acesso aos bens do progresso científico. Ter direito ao mínimo vital. Trabalho escravo, trabalho infantil, tudo isto agride o mínimo vital do ser humano. Direitos humanos são direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais. Direitos civis e políticos estão bem resolvidos no plano das leis, no papel, mas têm baixa implementação. O resto será uma conquista da sociedade. Há milhões de brasileiros sem nenhum documento, não foram registrados, vão passar a vida inteira sem nenhum documento e morrer sem atestado de óbito. Eles não existem civilmente. Isso precisa mudar.
Isto É - O discurso puramente humanitário também está desgastado?
Nilmário - De modo algum. Essa é a filosofia no Brasil. A sociedade brasileira tem uma violência social forte, mas não tem componentes de ódio religioso ou racial nem ambições imperialistas. Você tem presídios que funcionam, mesmo sem dinheiro. Funcionam porque têm reinserção alta. A maioria não dá certo porque está superlotada, sem trabalho, sem educação, sem esporte, sem visitas. Assim, só dá confusão. Onde tem trabalho, há reinserção. Aqui mesmo no prédio do Ministério da Justiça há mais de 70 ex-presidiários que viraram funcionários públicos, mas estão em regime semi-aberto, e têm excelente rendimento. Isso mostra que nosso sistema funciona. O projeto como um todo prevê prisões federais de alta segurança para os criminosos perigosos, aumento dos presídios semi-abertos e prisões albergues. O objetivo da prisão para nós não é só a punição, é a reinserção. Todos que defendem pena dura para crimes comuns sempre discordam desta opção quando descobrem um parente criminoso.
Isto É - Um fazendeiro que tem trabalhador escravo não é uma situação mais grave do que o plantador de maconha que perde a terra por isto?
Nilmário - Para mim dá na mesma. Deveriam ter o mesmo tratamento. Há uma emenda constitucional do então senador Ademir Andrade que prevê a perda do bem, sem indenização. Já foi aprovada no Senado, só falta a Câmara. Quando isso ocorrer, vai acabar o trabalho escravo. Este ano, como aumentamos a repressão, vamos libertar pelo menos 25 mil pessoas.
Isto É - A lei, então, não acaba com a violência?
Nilmário - Não acaba porque ela não é aplicada para todos. Mas não vamos reduzir a importância das leis. Quem viveu na ditadura sabe da importância de se ter leis.
Isto É - Mas, mesmo com as leis, a violência no Brasil parece que aumenta.
Nilmário - Isto é porque a nossa democracia não enfrentou o problema da distribuição da renda e do poder no Brasil. Isso aconteceu em toda a América Latina, que entrou na democracia formal, mas sem acesso aos direitos humanos, econômicos e sociais.
Isto É - Isto mostra que, para milhões, as leis que falam de cidadania não existem?
Nilmário - É verdade. Isso mostra que só a lei não basta. O Estado ou o poder público tem que estar presente na vida das pessoas. Por exemplo: o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a existência dos conselhos tutelares em todos os cinco mil municípios. Mas só existem três mil, a maioria pró-forma. Temos que ter este instrumento em todas as cidades. O Brasil já resolveu o problema das liberdades políticas. Aqui ninguém é preso por causa de suas opiniões e nosso sistema legal é super-avançado. O problema é a sua implementação. Tortura, por exemplo, é crime hediondo, mas ainda é disseminada em todas as delegacias. Ainda não temos na prática o amplo direito de defesa e um terço da população não tem acesso à Justiça. Vive em pobreza tão grande que não tem acesso ao direito de votar e termina vendendo voto, o que é uma prova da inexistência de direito humano vital.