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Estudo da USP e da Universidade de Londres mapeia transtornos na população brasileira de sete a 14 anos
Por Armando Antenore - Folha de S. Paulo   21 de maio de 2003
O estudo, que nasceu em 1999, pretendia quantificar a ocorrência de
transtornos psiquiátricos na população com idade entre sete e 14 anos.
Para tanto, analisou 1.251 alunos de 22 escolas públicas e de quatro
escolas privadas. Os 662 meninos e as 589 meninas viviam em Taubaté
-cidade paulista que abriga cerca de 244 mil habitantes. Os pesquisadores
a escolheram pelo fato de exibir índices socioeconômicos similares aos de
outros municípios das regiões Sul e Sudeste. Nunca um trabalho do gênero
no país se valeu de amostra tão extensa. A conclusão: 12,5% dos alunos examinados
acusaram uma ou mais patologias.
Projetando a cifra nacionalmente, como é praxe em levantamentos epidemiológicos, os especialistas chegaram aos 3,4 milhões. Claro que o cálculo embute uma certa distorção -uma vez que a realidade de Taubaté não corresponde à da Amazônia ou à do agreste nordestino. Mesmo assim, os cientistas julgam os 3,4 milhões um número representativo. "Superestimado não está. Arriscaria dizer justamente o contrário: talvez esteja um pouco aquém da verdade", defende a psiquiatra infantil Bacy Fleitlich Bilyk, 35, que coordenou o estudo na USP. O inglês Robert Goodman, também psiquiatra infantil, chefiou a empreitada em Londres, e o fundo britânico The Wellcome Trust bancou o custo de US$ 350 mil. Bilyk argumenta que, se a amostra incluísse municípios menos prósperos, a taxa de 12,5% subiria -"já que a pobreza constitui um importante fator de risco para doenças psiquiátricas". A porcentagem encontrada, de todo modo, é inferior à de um levantamento semelhante feito nos EUA. Supera, porém, as obtidas em investigações inglesas e indianas.
Brigas e furtos
Quem quiser comparar as constatações de Bilyk e Goodman com estatísticas oficiais enfrentará sérios percalços. O governo federal não possui dados precisos sobre o assunto. "Desconhecemos quantas crianças e adolescentes brasileiros padecem de distúrbios mentais", afirma o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, do Ministério da Saúde. Não à toa, faltam no país serviços públicos que priorizem tal clientela. Apenas em 2002 é que surgiram os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis. Com recursos do SUS, formam uma rede ainda tímida, que soma 32 ambulatórios, distribuídos por 12 Estados.
Para a maioria dos garotos que manifesta patologias daquela natureza e não pode frequentar clínicas particulares, sobram os postos de saúde. Ou, nos casos graves, os educandários gratuitos. "Em ambas as situações, o atendimento deixa muito a desejar", avalia Delgado. Antes de Bilyk e Goodman explorarem o tema, o psiquiatra e epidemiologista Naomar de Almeida Filho -hoje reitor da Universidade Federal da Bahia - seguiu trilha parecida. Em 1981, numa comunidade pobre de Salvador, examinou 828 moradores que tinham entre cinco e 14 anos. O resultado da sondagem se revelou alarmante: 23% amargavam distúrbios emocionais. Como o trabalho empregou critério diagnóstico de 1969, acabou envelhecendo.
Já a nova pesquisa se baseia na CID-10 - a mais recente versão da célebre Classificação Internacional de Doenças, produzida pela Organização Mundial da Saúde. Em Taubaté, os cientistas não acharam evidências de esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva ou autismo. Mas identificaram outros cinco tipos de transtornos:
Os de comportamento
- Afetavam 7% dos alunos. As vítimas demonstram agressividade intensa e desafiam constantemente as normas sociais. Provocam brigas, praticam pequenos furtos, enfrentam autoridades, maltratam animais, causam incêndios e utilizam armas. "Não estamos, aqui, no terreno tão corriqueiro da revolta juvenil ou das birras de criança", esclarece Bilyk. "As patologias de conduta pressupõem algo bem mais severo, com danos consideráveis para o paciente e para aqueles que o cercam."
As ansiedades
- Atingiam 5,2% dos estudantes. Incluem as compulsões e obsessões, as fobias (de altura, de avião, de chuva, de insetos, de multidão, de lugares abertos, de escola etc.) e o medo de se separar dos pais.
A hiperatividade
- Acometia 1,5% da amostra. O quadro combina agitação em excesso, dificuldade para se concentrar e atitudes impulsivas.
A depressão
- Afligia 1% dos meninos e meninas.
As disfunções alimentares
- Apareciam em somente 0,2% dos analisados. Abrangem a anorexia nervosa, a bulimia e demais doenças associadas à culpa de comer.
Violência doméstica
De acordo com Bilyk, que atua no Instituto de Psiquiatria da USP, todos os tipos de transtorno dependem "de um tripé" para eclodir - a propensão genética, a maneira como a psique de cada pessoa se estrutura e motivações externas (ou ambientais). Entre as últimas, o estudo detectou pelo menos quatro. "Presenciar ou sofrer violência doméstica, ter parentes próximos com problemas emocionais e estar sob os efeitos da pobreza aumentam a probabilidade de crianças e adolescentes desenvolverem algum distúrbio", adverte a pesquisadora. Ela também ressalta que, quanto mais cedo vier a ajuda, maiores as chances de cura. Sem cuidados corretos, os males podem recrudescer e empurrar o paciente para o desemprego, o baixo desempenho escolar, o abuso de substâncias químicas e mesmo a criminalidade. O tratamento varia muito. Em certos casos, bastam sessões psicoterápicas individuais e familiares ou programas educativos que ensinam pais e professores a lidar com a situação. Outras vezes, é conveniente o uso de remédios.
Abrigo de crianças busca prevenção
Com quatro anos, quando ingressou no Lar das Crianças, em São Paulo, Lívia [nome fictício" costumava "desligar". De repente, interrompia o que estava fazendo e começava a olhar para o vazio. Não adiantava chamá-la. Nada a arrancava do alheamento. Volta e meia, também entrava em crise nervosa. Chorava durante 40, 50 minutos, sem nenhuma razão significativa. O pai -um camelô de baixa renda- sofria de depressão. Colocou a filha no abrigo por não ter onde deixá-la enquanto trabalhava. Ali, a garota passava todo o dia. À noite, seguia para casa. Perto dos oito anos, manifestou sérias dificuldades motoras e se revelava incapaz de amarrar os próprios sapatos. Aos nove, perdeu o pai, assassinado. A morte a abalou profundamente, tornando-a ainda mais triste e silenciosa. Hoje, Lívia tem dez anos. Continua no Lar das Crianças e, não raro, "desliga". A diferença é que, agora, se submete à psicoterapia. "De uns tempos para cá, percebemos que devíamos priorizar a prevenção e o tratamento precoce de problemas emocionais em nossos internos. A maioria, afinal, advém de famílias pobres, desestruturadas e muitas vezes violentas", explica Tomas Freund, coordenador da instituição. Fundado em 1937, o lar se localiza na zona sul e pertence à Congregação Israelita Paulista. Atende gratuitamente cerca de cem meninos e meninas, com idade mínima de quatro anos e máxima de 17. Embora siga as tradições judaicas, acolhe adeptos de diversas orientações religiosas. Há décadas, recorre à assessoria de psicólogos. Em abril de 2001, no entanto, resolveu intensificar os cuidados com "a saúde mental da molecada", como diz Freund. Lançou mão, assim, do auxílio de uma psiquiatra infantil, que avalia os "casos mais inquietantes". Depois de minucioso exame, a especialista não diagnosticou nenhum transtorno em Lívia. Mas lhe recomendou as sessões psicoterápicas de apoio. Além da garota, o lar enviou dois meninos para a apreciação da médica. Um apresenta sintomas de esquizofrenia. O outro garoto, vítima de agressões domésticas, mostra-se excessivamente irritado. (AA) Folha de S.Paulo 20 de abril
Projetando a cifra nacionalmente, como é praxe em levantamentos epidemiológicos, os especialistas chegaram aos 3,4 milhões. Claro que o cálculo embute uma certa distorção -uma vez que a realidade de Taubaté não corresponde à da Amazônia ou à do agreste nordestino. Mesmo assim, os cientistas julgam os 3,4 milhões um número representativo. "Superestimado não está. Arriscaria dizer justamente o contrário: talvez esteja um pouco aquém da verdade", defende a psiquiatra infantil Bacy Fleitlich Bilyk, 35, que coordenou o estudo na USP. O inglês Robert Goodman, também psiquiatra infantil, chefiou a empreitada em Londres, e o fundo britânico The Wellcome Trust bancou o custo de US$ 350 mil. Bilyk argumenta que, se a amostra incluísse municípios menos prósperos, a taxa de 12,5% subiria -"já que a pobreza constitui um importante fator de risco para doenças psiquiátricas". A porcentagem encontrada, de todo modo, é inferior à de um levantamento semelhante feito nos EUA. Supera, porém, as obtidas em investigações inglesas e indianas.
Brigas e furtos
Quem quiser comparar as constatações de Bilyk e Goodman com estatísticas oficiais enfrentará sérios percalços. O governo federal não possui dados precisos sobre o assunto. "Desconhecemos quantas crianças e adolescentes brasileiros padecem de distúrbios mentais", afirma o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, do Ministério da Saúde. Não à toa, faltam no país serviços públicos que priorizem tal clientela. Apenas em 2002 é que surgiram os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis. Com recursos do SUS, formam uma rede ainda tímida, que soma 32 ambulatórios, distribuídos por 12 Estados.
Para a maioria dos garotos que manifesta patologias daquela natureza e não pode frequentar clínicas particulares, sobram os postos de saúde. Ou, nos casos graves, os educandários gratuitos. "Em ambas as situações, o atendimento deixa muito a desejar", avalia Delgado. Antes de Bilyk e Goodman explorarem o tema, o psiquiatra e epidemiologista Naomar de Almeida Filho -hoje reitor da Universidade Federal da Bahia - seguiu trilha parecida. Em 1981, numa comunidade pobre de Salvador, examinou 828 moradores que tinham entre cinco e 14 anos. O resultado da sondagem se revelou alarmante: 23% amargavam distúrbios emocionais. Como o trabalho empregou critério diagnóstico de 1969, acabou envelhecendo.
Já a nova pesquisa se baseia na CID-10 - a mais recente versão da célebre Classificação Internacional de Doenças, produzida pela Organização Mundial da Saúde. Em Taubaté, os cientistas não acharam evidências de esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva ou autismo. Mas identificaram outros cinco tipos de transtornos:
Os de comportamento
- Afetavam 7% dos alunos. As vítimas demonstram agressividade intensa e desafiam constantemente as normas sociais. Provocam brigas, praticam pequenos furtos, enfrentam autoridades, maltratam animais, causam incêndios e utilizam armas. "Não estamos, aqui, no terreno tão corriqueiro da revolta juvenil ou das birras de criança", esclarece Bilyk. "As patologias de conduta pressupõem algo bem mais severo, com danos consideráveis para o paciente e para aqueles que o cercam."
As ansiedades
- Atingiam 5,2% dos estudantes. Incluem as compulsões e obsessões, as fobias (de altura, de avião, de chuva, de insetos, de multidão, de lugares abertos, de escola etc.) e o medo de se separar dos pais.
A hiperatividade
- Acometia 1,5% da amostra. O quadro combina agitação em excesso, dificuldade para se concentrar e atitudes impulsivas.
A depressão
- Afligia 1% dos meninos e meninas.
As disfunções alimentares
- Apareciam em somente 0,2% dos analisados. Abrangem a anorexia nervosa, a bulimia e demais doenças associadas à culpa de comer.
Violência doméstica
De acordo com Bilyk, que atua no Instituto de Psiquiatria da USP, todos os tipos de transtorno dependem "de um tripé" para eclodir - a propensão genética, a maneira como a psique de cada pessoa se estrutura e motivações externas (ou ambientais). Entre as últimas, o estudo detectou pelo menos quatro. "Presenciar ou sofrer violência doméstica, ter parentes próximos com problemas emocionais e estar sob os efeitos da pobreza aumentam a probabilidade de crianças e adolescentes desenvolverem algum distúrbio", adverte a pesquisadora. Ela também ressalta que, quanto mais cedo vier a ajuda, maiores as chances de cura. Sem cuidados corretos, os males podem recrudescer e empurrar o paciente para o desemprego, o baixo desempenho escolar, o abuso de substâncias químicas e mesmo a criminalidade. O tratamento varia muito. Em certos casos, bastam sessões psicoterápicas individuais e familiares ou programas educativos que ensinam pais e professores a lidar com a situação. Outras vezes, é conveniente o uso de remédios.
Abrigo de crianças busca prevenção
Com quatro anos, quando ingressou no Lar das Crianças, em São Paulo, Lívia [nome fictício" costumava "desligar". De repente, interrompia o que estava fazendo e começava a olhar para o vazio. Não adiantava chamá-la. Nada a arrancava do alheamento. Volta e meia, também entrava em crise nervosa. Chorava durante 40, 50 minutos, sem nenhuma razão significativa. O pai -um camelô de baixa renda- sofria de depressão. Colocou a filha no abrigo por não ter onde deixá-la enquanto trabalhava. Ali, a garota passava todo o dia. À noite, seguia para casa. Perto dos oito anos, manifestou sérias dificuldades motoras e se revelava incapaz de amarrar os próprios sapatos. Aos nove, perdeu o pai, assassinado. A morte a abalou profundamente, tornando-a ainda mais triste e silenciosa. Hoje, Lívia tem dez anos. Continua no Lar das Crianças e, não raro, "desliga". A diferença é que, agora, se submete à psicoterapia. "De uns tempos para cá, percebemos que devíamos priorizar a prevenção e o tratamento precoce de problemas emocionais em nossos internos. A maioria, afinal, advém de famílias pobres, desestruturadas e muitas vezes violentas", explica Tomas Freund, coordenador da instituição. Fundado em 1937, o lar se localiza na zona sul e pertence à Congregação Israelita Paulista. Atende gratuitamente cerca de cem meninos e meninas, com idade mínima de quatro anos e máxima de 17. Embora siga as tradições judaicas, acolhe adeptos de diversas orientações religiosas. Há décadas, recorre à assessoria de psicólogos. Em abril de 2001, no entanto, resolveu intensificar os cuidados com "a saúde mental da molecada", como diz Freund. Lançou mão, assim, do auxílio de uma psiquiatra infantil, que avalia os "casos mais inquietantes". Depois de minucioso exame, a especialista não diagnosticou nenhum transtorno em Lívia. Mas lhe recomendou as sessões psicoterápicas de apoio. Além da garota, o lar enviou dois meninos para a apreciação da médica. Um apresenta sintomas de esquizofrenia. O outro garoto, vítima de agressões domésticas, mostra-se excessivamente irritado. (AA) Folha de S.Paulo 20 de abril