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Reciclando materiais e biografias

Por Adriana Charoux - Faap/SP   25 de junho de 2003
Não é de hoje que as questões ambientais têm levantado polêmicas e suscitado inúmeras preocupações em seus mais diversos aspectos. Atualmente, grande parte das discussões gira em torno da destinação inadequada do lixo. Estima-se que, apenas na cidade de São Paulo, sejam produzidas diariamente 15 mil toneladas de lixo, volume capaz de preencher até a lotação seis estádios do Morumbi. Dessa montanha de detritos despejados nos aterros, 35% é reciclável, mas apenas 1% desse montante é de fato reaproveitado.
Ciente da gravidade do problema, a Prefeitura de São Paulo vem tomando medidas para tentar contornar uma situação que ameaça gerar um “apagão” no sistema de coleta de lixo municipal. Dentre elas, a fixação de mais uma taxa, não inclusa no IPTU, que será aplicada na construção de novas usinas de compostagem. Cada residência, estabelecimento comercial e indústria terá de contribuir na proporção de sua geração de resíduos.
Em meio a tantos esforços empreendidos, um projeto chama a atenção: a BR-3, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP propõe não só uma atuação que valorize a reciclagem, mas também a preciclagem, que consiste numa atitude de consumo responsável. A filosofia dessa organização já está explícita no próprio nome da instituição, cujos apregoados três erres dizem respeito às ações Reduzir, Reutilizar, e Reciclar. Reduzir o excesso de lixo; reutilizar o material sempre que possível antes de descartá-lo e, finalmente reciclar ou mais especificamente, separar o lixo para a sua reciclagem.
Tal premissa é aplicada pela BR-3 não só na redução dos detritos materiais, mas também na exclusão social, pregando a reutilização da força de trabalho, e reciclando a auto-estima de indivíduos excluídos. “Nossa preocupação central é gerar questionamento sobre a vida como um todo e promover educação através do trabalho”, afirma João Batista da Cruz, gerente de produção do Instituto Reciclar e responsável por todo procedimento técnico que inclua papel nos projetos.
“Nós queremos repensar o conceito de que meio ambiente e ser humano são entidades distintas. Ora, somos parte integrante do meio ambiente. Não existe o lá fora; um lugar onde o lixo possa ser depositado sem prejuízos. Logo, atuar de forma mais consciente e responsável é tarefa de todos”, defende Claudia Guazzelli, pedagoga da organização.Claudia aponta ainda que “o objetivo é promover e garantir uma crescente qualidade de vida aos seus habitantes, integrando-os ao meio ambiente do qual fazem parte, assim como ajudando-os a lutar contra as barreiras de exclusão social a que estão sujeitos”. Através da geração de renda para os membros da comunidade envolvidos, argumenta a pedagoga, resgata-se a auto-estima e a construção de uma identidade do grupo envolvido.

Do lixo ao luxo

O que poderia pairar apenas no campo retórico, no entanto, é posto em prática através da elaboração de produtos com uma aura “fashion” que, a partir de insuspeitas e desprezadas matérias-primas, despertam a sede de consumo de agentes que, do contrário, não integrariam essa corrente recuperadora de materiais e biografias. Explorando astutamente a estética “vintage” e gasta de produtos novos em folha que apresentam uma aparência usada, a BR3 tem, literalmente, feito do lixo um luxo na confecção de acessórios que vêm de encontro a essa demanda.
O material empregado é bastante inusitado: câmaras de pneus, papel, embalagens longa-vida, garrafas Pet e demais objetos descartados. A fundadora da organização, Vera Nunes, estilista e eco-desiner já desenvolveu uma série de produtos evolvendo esses rejeitos: bolsas, carteiras, mochilas, jaquetas, tudo reaproveitado. O que não se pode fazer com o pneu é completado por retalhos de panos recolhidos em oficinas têxteis. Garrafas Pet são transformadas em fibras que, misturadas a outros tecidos, resultam num artigo diferenciado e versátil. Outra experiência bem sucedida é o trabalho com papel. Batista vem desenvolvendo inúmeras técnicas de tratamento do papel reaproveitável. Cores variadas, papéis aromatizados etc.
Antes do projeto ser implantado é feito o diagnóstico da comunidade a ser engajada. No processo de mapeamento, são levantados o número de famílias e demais formas de organização social; a média de renda familiar; descendência étnica mais comum; nível de escolaridade; os maiores problemas ambientais da região; principais necessidades da comunidade e as condições básicas de moradia (saneamento, luz etc). Passada essa fase, a oficina onde os trabalhos serão realizados começa a ser erguida ou adaptada, dependendo das condições pré-existentes.
A partir daí, as pessoas desenvolvem trabalhos distintos. As mulheres geralmente participam de oficinas de moda, focadas no eco-design, que consiste na criação, desenho e confecção de diversos produtos com materiais de reaproveitamento e reciclagem. Este processo de aprendizagem se inicia através da produção de bolsas feitas com câmaras de pneu; um produto que já faz muito sucesso em feiras de moda alternativa como o Mercado Mundo Mix, Mambo Bazar, e outros espaços. Os homens tendem a atuar nas oficinas de movelaria com foco na eco-arte e eco-urbanismo, onde são criados produtos através de materiais retirados do lixo urbano. O incentivo à estruturação de uma cooperativa de serviços na área de construção civil já começa na própria montagem das oficinas. Os adolescentes integram o projeto de iniciação ao trabalho onde aprenderão a reciclar o papel; inclusive estudando texturas, cores e aromas.
Uma das novidades que a equipe liderada por João Batista vem desenvolvendo é o reaproveitamento do papel fotográfico. Em parceria com diferentes profissionais dessa área, esta forma de registro da imagem será explorada por grupos que, caso contrário, teriam acesso extremamente restrito a esse material. Além disso, estes jovens são convidados a participar de diferentes oficinas de protagonismo juvenil (além da fotografia, música, circo, grafite, artes plásticas, tudo desenvolvido a partir dos resíduos encontrados), assim como aulas de design e informática. Todas estas atividades são desenvolvidas de modo interdisciplinar, condicionadas à melhoria do desempenho escolar dos jovens integrantes das oficinas. O trabalho voltado para crianças conta com atividades na área de fotografia e artes plásticas que incentivam a leitura, a imaginação e a criação.
Além da formação de agentes multiplicadores, a organização de um espaço de ensino que beneficie a todos que não puderam estudar é fundamental no alcance da auto-sustentabilidade dessas comunidades. Para tal, a BR-3 propõe a criação de uma ou mais salas de educação para adultos que tem como educador, preferencialmente, algum membro da comunidade que trabalhe conjuntamente com a equipe pedagógica da instituição.
Palmeira dos Índios, São Jorge Arpoador e demais localidades já fazem parte do time auxiliado pela BR-3. Outros projetos já foram solicitados e elaborados, porém a falta de parceiros que invistam nessa idéia, impede que esse contingente se multiplique.
Sabe-se que as condições ambientais tendem a piorar significativamente com o crescimento das cidades, que o número de desempregados aumenta a cada mês e que a situação daqueles que ainda estão atuantes é cada vez mais incerta. “É por isso que não queremos apenas parceiros que invistam na BR-3; queremos outras BRs; queremos parceiros que acreditem que idéias como essa são extremamente rentáveis não só às comunidades beneficiadas, mas aos que investem nesse projeto”, reforça Vera.

Reciclar

Partidário do mesmo princípio, o Instituto Reciclar, fundado em 1995, é um projeto que atualmente beneficia 37 adolescentes de 16 a 19 anos, que aprendem técnicas de reciclar, colorir, aromatizar e desenvolvimento de peças que receberão esse papel. Até completarem o 3º colegial, os jovens podem trabalhar na instituição que, além de remunerá-los com um salário mínimo, ainda oferece aulas de inglês, informática e acompanhamento psicológico. Assim como a BR-3, o Reciclar impõe como condição para o pleno exercício do trabalho na comunidade o bom desempenho escolar dos integrantes. “Tem que ter boas notas”, reconhece Rafael de Oliveira, um dos adolescentes beneficiados.
“O Reciclar está indo muito bem. Já garantimos há algum tempo as metas para sobrevivência, alcançada com a venda de 250.000 produtos. No entanto, se formos somente auto-sustentáveis seremos apenas uma empresa. E, definitivamente, não é esse o objetivo desse projeto. A idéia é que, através de um trabalho artesanal, possamos discutir o que está acontecendo com a vida desses jovens. É por isso que queremos ampliar o Reciclar; para que mais pessoas possam ser beneficiadas por essa ação”, completa Batista, que além de ser membro fundador da BR-3, já vem trabalhando no Reciclar desde sua fundação. É importante lembrar que a premissa de ampliação desse auxílio é o patrocínio de empresas que se interessem por essa causa.
“O bom é que aqui, no setor de produção do papel todos fazem tudo. A cada duas horas o pessoal troca de posto”, completa Rafael. Desse modo, além de não tornar o trabalho maçante, todos tem a possibilidade de participar de todas as etapas do processo produtivo. Uma vez que as atividades deixam de ser fragmentadas e isoladas, as pessoas não só desenvolvem um espírito coletivo, mas também podem se tornar agentes multiplicadores dessa experiência. “Essa entidade é um dos exemplos a serem seguidos”, reitera Claudia Guazzelli. “Afinal de contas, ela já põe em prática há muito tempo aquilo que poucos estão começando a fazer hoje”, diz.
Embora as motivações nem sempre sejam estritamente solidárias, uma vez que o marketing social tem se mostrado uma poderosa ferramenta para agregar valor aos produtos ofertados num cenário crescentemente segmentado, há muito a ser celebrado. As empresas que já aderiram às causas ambientais registram enorme aceitação de seus produtos e valorização de sua imagem corporativa, uma vez que o discurso da preocupação do consumidor extrapola a mera oferta de produtos adequados a seu público-alvo. Segundo pesquisa realizada em 2002, pela Indicator Pesquisa de mercado em conjunto com o Instituto Ethos, estima-se que 25% dos consumidores já levam em consideração a atitude social da empresa na hora de escolher os produtos que consomem. "É um índice significativo se levarmos em conta que a preocupação com a questão no Brasil é recente", explica Oded Grajew, diretor-presidente do Instituto Ethos.
Os bons frutos colhidos têm incentivado as empresas a destinarem cada vez mais recursos a causas solidárias, sendo essa relação habilmente explorada pelas poderosas ferramentas de marketing, a alavancar a boa imagem das corporações, perpetrando assim um círculo que, mesmo não sendo imaculado em suas motivações, é virtuoso.
Portanto, já se pode falar que investir nessa idéia ultrapassa a benevolência e a disposição para lucrar menos. Incutir valores mais éticos e integradores mostra-se uma estratégia de sobrevivência no mercado aliada à preservação sócio-ambiental. A questão levantada por organizações como a BR-3 e o Instituto Reciclar dizem respeito aos limites da política assistencialista. Embora hoje não se possa descartar essa alternativa imediatista e emergencial, é preciso pensar a longo prazo. E políticas que não ofereçam instrumentos para que a própria sociedade consiga recriar suas condições, tendem a perpetuar e alargar o espectro de miséria no país.
A velha máxima de ensinar a pescar ao invés de dar o peixe mostra-se mais atual e premente do que nunca, assim como a necessidade de ações como as da BR3 e Instituto Reciclar deixarem de ser ilhas de exceção num oceano de medidas ineficazes que atuam mais sobre os efeitos do que sobre as causas da exclusão.




Mais informações

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Fone:(11)43326445

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