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Os desafios do Terceiro Setor

Por Luiz Barros / Jornal do Comércio   30 de julho de 2003
D o ponto de vista clássico, há três setores básicos na cadeia produtiva: a agropecuária é o setor primário, a indústria o secundário e os serviços representam o setor terciário. Atualmente outra classificação é utilizada paralelamente, enfatizando a identidade dos agentes econômicos. Assim, o governo é considerado o Primeiro Setor, as empresas privadas, que operam com a finalidade de lucro, constituem o Segundo Setor e as organizações privadas, não-governamentais e sem finalidade de lucro, constituem o Terceiro Setor, cujo foco de atuação está voltado para as áreas sociais.

Duas vertentes impulsionaram o desenvolvimento das ONGs. Na esfera política essas entidades assumiram papéis de representação da sociedade civil em contraditórios perante o poder estatal ou junto ao próprio empresariado. É o caso, por exemplo, da liderança que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) assumiu no combate ao regime militar ou do papel que hoje representa o IDEC (Instituto de Defesa do Consumidor).

No caso do IDEC trata-se de defesa de direitos econômicos mas a função educativa de cidadania exercida também caracteriza uma atuação política. Variada gama de entidades, presentes em todos os campos sociais, inclusive associações e federações de empresários, compõem o amplo espectro do Terceiro Setor, ainda que sejam lembradas com mais freqüência apenas aquelas que atuam em defesa da parcela da população marginalizada ou excluída. A intensidade da atuação política de todas essas entidades é um indicador do nível de liberdade e do grau de conscientização e militância democrática da sociedade.

O segundo vetor do desenvolvimento do Terceiro Setor relaciona-se a sua capacidade de oferecer serviços sociais mais eficazes e baratos. Por inviabilidade econômica, em nível mundial o ideal do "welfare state" está sendo abandonado há anos, mas o setor empresarial privado, salvo exceções, tem se mostrado incapaz de prover educação, saúde, previdência social, amparo aos excluídos, proteção do meio ambiente etc., áreas de especial competência de atuação das entidades do Terceiro Setor. Neste campo utiliza-se a distinção entre os conceitos de "público" e "estatal". Assim, as legítimas ONGs prestariam "serviços públicos não estatais". São serviços públicos porque de interesse público, mas as entidades mantêm-se na esfera privada. O desafio de muitas ONGs brasileiras hoje consiste exatamente em não se deixarem estatizar. A boa notícia é o governo dispor-se a financiálas, amá notícia é a avidez com que muitas correm atrás dessas verbas e o preço que pagam em perda de autonomia. O que de não-governamental restará em entidades privadas dependentes do Estado se este é gerido pelo governo?

O ritmo de expansão do Terceiro Setor é assombroso. Já em 1998 existiam nos EUA mais de 1 milhão de ONGs, movimentando cerca de US$ 200 bilhões ao ano e gerando cerca de 7% dos empregos no país. Na mesma época, já se contavam no Brasil mais de 166 mil entidades, entre tradicionais organizações filantrópicas, modernas fundações, associações, cooperativas, além de entidades operando em outras modalidades associativas, e outras informais que não constam de estatísticas. Muitas destacam-se por atuação em defesa da vida e da dignidade, em todas as esferas e dimensões.

Há entidades que geram preocupações na esfera política, ao lidar com questões sensíveis, como é o caso das que atuam na Amazônia com financiamento internacional. Quando essas questões são levantadas, é difícil julgar comisenção porque os argumentos favoráveis ou contrários são carregados ideologicamente e informações precisas não são claramente apresentadas.

A idoneidade das entidades do Terceiro Setor é a regra geral. Em grande número de casos a competência de sua administração pode ser considerada superior à das empresas privadas. Seus dirigentes, funcionários e voluntários são obrigados a desenvolver inventividade e habilidades especiais para lidar com as adversidades inerentes à gestão de organizações sociais com reduzidíssimos recursos orçamentários em relação à gravidade dos problemas que enfrentam.

Mas não é segredo a ocorrência de burlas. O assunto é ventilado pela imprensa de tempos em tempos e há alguns anos chegou-se a cogitar da instalação de uma CPI das ONGs no Congresso Nacional. Seria ingênuo supor que não existam organizações não-governamentais que merecem melhor exame de sua atuação.

Fiscalizar as ONGs para sanear eventuais burlas só há de trazer benefícios às entidades, para que pelo erro de algumas não pesem dúvidas sobre todas. Mas o público não pode jamais ser prejudicado por sanções porventura a elas impostas. Não é admissível, por exemplo, o que hoje se verifica com estudantes universitários que estão correndo o risco de perder bolsas de estudos ou sofrer grande acréscimo de mensalidades, conforme noticiado pela imprensa, por conta de sanções governamentais impostas a duas instituições de ensino paulistas. Se houver culpa das instituições, a cumplicidade é do governo que não as fiscalizou adequadamente, e não dos estudantes que não devemser punidos por erro que não lhes cabe.

O grande desafio do Terceiro Setor não se refere a eventuais irregularidades em algumas entidades. Tendo se apercebido da pujança das ONGs, de seu idealismo e vocação para encaminhar soluções criativas e eficientes na área social, governo e empresas partem para cooptá- las. Trata-se de ameaça à essência dessas entidades.

O governo Lula definiu políticas que acentuam a cooptação das ONGs que já vinha ocorrendo de forma nítida no governo Fernando Henrique. É fácil entender. No vetor político muitas entidades que combatiam o governo até a gestão de Collor e Itamar Franco, passaram a apoiar as iniciativas e as políticas sociais de Fernando Henrique e hoje, ainda mais abertamente, as de Lula, por afinidades ideológicas ou pelo menos por não apresentarem restrições explícitas.

Paralelamente, no vetor econômico, na última década o governo brasileiro descobriu a crescente eficácia das entidades na implantação de políticas sociais. Matando dois coelhos comuma só cajadada, passou a transferir maiores recursos públicos às ONGs com isto garantindo apoio político-eleitoral e passando a interferir nas estratégias de atuação dessas entidades.

Termos de parceria legalmente permitem ao governo a transferência de verbas e a cessão de funcionários e prédios públicos para essas entidades. Com isso muitas ONGs transformam- se em braços executivos de políticas governamentais, como o leitor pode perceber a cada anúncio de iniciativa social do governo Lula, quando enumeram-se as entidades participantes dos programas.

Em perigosa inversão, as ONGs, que no vetor político justificam- se para contrapor-se ao Estado, aliaram-se ao governo ideologicamente. Outras, dissidentes, calam-se politicamente para obter recursos para suas comunidades e outras, ainda, são proscritas do cenário como "non gratas" porque ao manterem- se atuantes no contraditório inclusive perdem verbas empresarias pela pressão governamental em seu jogo partidário junto às empresas. Por isto a importância da auto-sustentabilidade das entidades, objetivo muito difícil na área e que não é favorecido pelas políticas atuais para o setor.

Se o governo fosse competente na área social, as ONGs nunca teriam adquirido a importância que as caracteriza como novo setor da economia.

Sua criatividade e eficácia, assim como sua liberdade de expressão, podem ser aniquiladas pelos mecanismos de pressão envolvidos na liberação de verbas governamentais para que sejam meras executoras de políticas do Estado.

Na esfera empresarial verificam- se casos de programas de responsabilidade social de empresas desenvolvidos em parceria com ONGs. Vários desses, mesmo quando são úteis à população, priorizam interesses de merchandising do patrocinador que direta ou indiretamente podem acabar por interferir nas prioridades das entidades.

Em muitos casos, as empresas, para apoiar as entidades, usam verbas orçamentárias de marketing, gerenciadas por executivos pressionados a prestar contas por resultados comerciais. É importante que demandas de ONGs sejam atendidas por verbas institucionais, menos restritivas e não condicionadas a interesses comerciais. Sem dispensar o rigor da análise da idoneid a d e e com p e t ê n c i a d a entidade beneficiada, as empresas poderiam considerar os recursos aplicados em patrocínios e parcerias com o mesmo espírito que se entendem as doações. A autêntica doação não cobra resultados para o doador, avalia-se pela verificação de sua utilidade para o beneficiário e seus próprios planos.

As ONGs necessitam apoio, mas o interesse governamental e empresarial em valer-se delas como braços executivos de programas sociais estatais ou empresariais inspira cautela para que a força renovadora do Terceiro Setor não se descaracterize. Encontrar o equilíbrio no relacionamento entre ONGs, governo e empresas constitui um dos maiores desafios do Terceiro Setor no Brasil.

Luiz Barros
é administrador pela FGV, doutor em Filosofia da Educação pela USP e Fellow da Ashoka - Empreendedores Sociais.

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