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Em busca de um ponto final para o analfabetismo

Por Fausto Rêgo   10 de setembro de 2003
Foto de divulgação
São PauloO programa Brasil Alfabetizado, que o governo federal anuncia neste 8 de setembro, Dia Internacional da Alfabetização, pretende ser um marco inicial para o cumprimento da ambiciosa meta anunciada pelo ministro Cristovam Buarque ao assumir o Ministério da Educação: erradicar o analfabetismo em quatro anos. Da parte dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil, a expectativa é grande, assim como a preocupação de que o programa tenha continuidade e não crie uma nova leva de analfabetos funcionais – gente que sabe pouco mais do que ler e escrever o próprio nome ou que até lê, mas não entende o que está escrito.
O número de analfabetos no país está estimado em cerca de 20 milhões de pessoas. Os dados oficiais, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referem-se a aproximadamente 16 milhões, mas estão incompletos. A Região Norte, por exemplo, não foi considerada nessa análise. Quando se fala em analfabetismo funcional, o volume é muito maior – acrescentam-se outros 30 milhões de brasileiros. Reduzir a zero esses números é, portanto, um imenso desafio. A Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo trabalha com as seguintes metas: alfabetizar 3 milhões de pessoas em 2003, 6 milhões em 2004, 6 milhões em 2005 e 5 milhões em 2006.
Em meio a uma intensa programação de seminários e debates, representantes da sociedade civil discutem expectativas, propostas e recomendações para que esse objetivo se cumpra. Preocupações também. Regina Esteves, superintendente executiva da Alfabetização Solidária, acha que a erradicação do analfabetismo será possível quando houver uma política para educação de jovens e adultos e uma unidade no sistema de alfabetização, independentemente de métodos. “É preciso pensar no fortalecimento da EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Se olharmos os números do Censo Escolar, tivemos um aumento em torno de 12% nas matrículas para esse público. Só que isso não atende às necessidades, a carência é muito maior. Existe ainda uma indefinição quanto a políticas e financiamento para a EJA. A erradicação do analfabetismo passa necessariamente por essa bandeira. E a gente lembra que o papel das entidades do terceiro setor é fomentar a ação, mas não pode substituir ou inibir a atuação do Estado”.
A questão do financiamento é tema recorrente em outros depoimentos e também faz parte do discurso da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que reúne diversas organizações e redes de educação. Duas reivindicações têm mais destaque: uma é pela derrubada do veto do então presidente Fernando Henrique Cardoso ao item do Plano Nacional de Educação que comprometia o governo com o investimento mínimo de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação. A outra luta é para que o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) destine recursos também para a educação de jovens e adultos, o que hoje não ocorre. “A EJA não recebe recursos do Fundef, e isso seria muito importante. Para as pessoas irem para a escola, é preciso que haja mais vagas. Para que haja mais vagas, é preciso ter financiamento”, diz Maria Alice de Paula Santos, coordenadora de Educação de Jovens e Adultos do Instituto Paulo Freire.
O Ministério da Educação já encaminhou à Casa Civil um pedido para que seja aprovado o repasse do Fundef para a educação de jovens e adultos. A proposta precisa ser aprovada em Congresso e, segundo o titular da Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, João Luiz Homem de Carvalho, não depende de decisão orçamentária do governo.
Sem reticências
O programa Brasil Alfabetizado – que, mesmo antes de seu lançamento oficial, já estava em prática – é realizado por meio de convênios com prefeituras, escolas, organizações não-governamentais e empresas. Até o momento, 37 convênios foram assinados e o programa chega a 1.768 municípios. Esta iniciativa propõe um período de seis meses de aula, mas as instituições responsáveis poderão fazer ajustes conforme suas propostas pedagógicas.
A duração ideal, aliás, foi um tema bastante discutido durante o debate “Alfabetização e analfabetismo: desafios para as políticas públicas”, organizado pela Ação Educativa, pelo Instituto Itaú Cultural e pela Rede Sesc-Senac de Televisão, no dia 3 de setembro, em São Paulo. Vera Masagão, secretária executiva adjunta da Ação Educativa e membro da Rede de Ação Alfabetizadora de Adultos do Brasil (RAAAB), defende o período de um ano como mais adequado e capaz de dar maior segurança para que as pessoas continuem os estudos. Liana Borges, ex-coordenadora do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) do governo do Rio Grande do Sul e hoje assessora de gabinete da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, acha inadmissível que se pense em um período inferior a oito meses. Já Célio da Cunha, assessor da Unesco para Políticas Educacionais, foi além: considerou “lamentável” que ainda se discuta no Brasil quantos meses serão dedicados à alfabetização em um mundo em que o ideal mínimo de escolaridade é de 8 a 10 anos.
Outro ponto enfaticamente abordado pelos representantes da sociedade civil foi a continuidade. “A alfabetização ocorre ao longo da vida”, afirma Regina Esteves. “Nos programas da Alfabetização Solidária, a gente atende de cinco a seis meses, mas o trabalho não se encerra aí, é um processo que deve continuar. Temos todo um trabalho articulado com a rede municipal de ensino. E é preciso que se invista também no ensino fundamental regular, para que não sejam gerados novos analfabetos. É muito importante, portanto, que se considerem essas duas pontas: a continuidade e a qualidade do ensino regular”.
Liana Borges teme que no atual governo se repitam erros do passado. “O programa não pode ser tratado como uma campanha de alfabetização, nem deve ter como característica principal uma visão assistencialista”, alerta. “É preciso que se constitua num movimento de luta pela garantia do direito à educação para todos, que haja preocupação com a continuidade do processo”. São riscos, segundo ela, que o país não pode correr, sob pena de não superar as dificuldades ao final desses quatro anos. O receio, portanto, não é quanto à possibilidade de atender todos os analfabetos até o final do governo, mas quanto à garantia de que, depois do primeiro contato com as letras, as pessoas tenham condições de freqüentar as escolas. “E essas escolas devem estar abertas para receber esse aluno que trabalha durante boa parte do dia”, defende Maria Alice, do Instituto Paulo Freire. “É preciso melhorar as condições das escolas, melhorar o ensino e as pessoas precisam ter acesso a elas e permanecer nelas”.
Uma vírgula
O secretário Extraordinário de Erradicação do Analfabetismo demonstra as mesmas preocupações. Ele garante que haverá continuidade. O problema, reclama, é que nem todos acreditam. “A gente tem que analisar o que está acontecendo, não discutir o que vai acontecer, senão não fica científico. Eu digo que vamos dar continuidade, você pode dizer que não acredita e a gente, assim, fica num impasse”.
Para João Luiz, não se pode negar que desde 1997 o Brasil vem sendo alfabetizado. Ele destaca, porém, a mudança de atitude diante do problema do analfabetismo. “Saímos de uma proposta assistencialista de diminuir o analfabetismo para uma meta de acabar com ele. É como a prostituição infantil: não se pode falar em redução, tem que acabar!”. De acordo com o secretário, isso impõe uma estratégia diferente de esforços e mobilização. E um dos aspectos é justamente a continuidade. Como exemplo, cita duas propostas. Uma delas, já em prática, é o projeto Leituração, que oferece aos recém-alfabetizados versões em linguagem simples de clássicos e livros regionais. Três adaptações já estão prontas e o projeto vai começar com um grupo de cerca de 450 pessoas em João Pessoa e Recife. Outra proposta é a expansão de um projeto iniciado no Distrito Federal: levar a todo o país a idéia das bibliotecas comunitárias. Segundo o Ministério da Educação, o projeto-piloto deverá ser implantado em três mil residências de duzentos municípios, até o final do ano. A idéia inicial é implantar as bibliotecas na casa de alunos beneficiados pelo programa Bolsa-Escola. “Nosso ponto fundamental é mostrar que o analfabetismo tem de acabar e fincar o pé na questão da continuidade”, diz João Luiz. “Caso contrário, não se impõe, as pessoas voltam a ser analfabetas”.
Entre parênteses
O analfabetismo é apenas parte do problema. Somar o esforço de alfabetização com outros programas pode ser uma solução. Uma dessas iniciativas é o programa Alfa-Inclusão, que vai integrar projetos de alfabetização e de emprego e renda. Outra iniciativa é o programa Fome Zero, já presente em 606 dos municípios atendidos pelo Brasil Alfabetizado. A possibilidade de implantação de telecentros nessas áreas, proposta que está sendo dicutida pelo governo federal num processo do qual a RITS está participando, poderá levar ainda a alfabetização digital a essas comunidades. A tecnologia deverá ter um papel igualmente importante na capacitação dos alfabetizadores e no acompanhamento do programa. “Nós vamos colocar todos os alfabetizadores e instrutores do país em contato por teleconferência. Nossa idéia é levar isso a todos os lugares onde está a TV Escola [programa do MEC para capacitação, atualização e aperfeiçoamento de professores da rede pública]”, explica João Luiz.
Esforços de organizações da sociedade civil também revelam como a alfabetização pode provocar transformações em outros aspectos. Nesta semana, durante a IV Semana da Alfabetização, que a ONG Alfabetização Solidária realiza em São Paulo, a entidade vai divulgar os resultados de uma pesquisa sobre o impacto dos projetos que desenvolve em cada município, acompanhando indicadores como aumento de renda e desempenho escolar. Uma das surpresas foi o aumento do número de cooperativas. “Isso mostra como o capital social da educação e da alfabetização vai impactar outras atividades”, comenta Regina Esteves.
Na verdade, a alfabetização é o começo de uma série de conquistas que se traduzem em uma velha palavra que se aprende mesmo sem bê-a-bá: cidadania.
Mais informações podem ser solicitadas por email para fausto

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