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Em vinte anos de existência, projeto retira crianças da rua

Por Laura Giannecchini   10 de setembro de 2003
Foto de divulgação Crianças que trabalham na feira são cadastrados pelos educadores do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo
São Bernardo - Todas as manhãs, educadores do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo (PMMR) saem pelas vias da cidade em busca de crianças que, ao invés de estarem na escola ou brincando, vendem guloseimas nos faróis, fazem carreto nas feiras, pedem esmolas ou estão envolvidas com o tráfico de drogas.

No dia em que foi feita esta reportagem, fazia muito frio. Durante a caminhada, Lourdes Jorge de Oliveira encontrou alguém deitado no chão, enrolado em um cobertor. A educadora logo imagina: "será uma criança?". Com a experiência de quem trabalha no Projeto desde 1986, Lourdes se aproxima e pergunta ao garoto se ele não quer ir à sede do PMMR tomar um banho quente.

Começa a "paquera pedagógica" para tentar conquistar a confiança do menino. A intenção é que a "paquera" vire "namoro" e, então, "casamento", como Lourdes explica. Ela deseja que o menino conheça o PMMR e, aos poucos, comece a freqüentar suas oficinas culturais, volte para a escola, reintegre-se à família e saia da rua.

O menino não mostra o rosto, mas ouve com atenção o que a educadora tem a dizer. São palavras e gestos de carinho e apoio. E, finalmente, o garoto pergunta até que horas a sede do Projeto fica aberta, dizendo que mais tarde passaria por lá.

Os educadores do PMMR não impõem nada às crianças que atendem. "Você chega até elas fazendo alguma brincadeira, sem essa pressão de falar 'eu sou educadora, estou aqui por isso, por isso e por isso'. Nós respeitamos a atitude das crianças porque, no primeiro momento, ela não vai querer falar com a gente. Se você força alguma coisa, acaba perdendo o menino de vez. É um processo demorado até conquistar a confiança", explica Lourdes.

De acordo com Ademar Carlos de Oliveira, presidente do PMMR, essa metodologia de abordagem das crianças "de rua" (aquela que vive nas ruas, que já perdeu o vínculo familiar) e "na rua" (a que trabalha nas ruas, mas mantém relações com a família) foi desenvolvida no dia-dia, durante os 20 anos de existência do PMMR. Durante esse período, as técnicas foram se adaptando às transformações políticas, econômicas e sociais do país, e hoje são respeitadas por pedagogos e estudiosos.

Ademar conta que o primeiro contato com os meninos é feito na rua. Depois, as crianças vão para a sede da organização, onde participam de oficinas de teatro, dança, hip hop, música, e praticam esportes. Então, procura-se pela família da criança. Se ela estiver desestruturada, é encaminhada aos programas sociais do município.

O presidente diz que os professores da criança também são contatados "porque trabalhar na escola com um menino em situação de rua é diferente do que eles estão acostumados". Para cada uma dessas etapas (rua, oficinas culturais, visitas às famílias e intervenção social ou encaminhamento aos órgãos públicos), existem educadores treinados. Muitos, como Lourdes, já passaram por diversas delas.

Histórico - Em 1983, quando foi fundado por um grupo de pessoas da Igreja Metodista Presbiteriana e Católica, o PMMR tinha apenas a preocupação de denunciar violações dos direitos das crianças e dos adolescentes. De acordo com Anderson Mangolin, assessor de coordenação, naquela época, existia em São Bernardo, um grupo muito forte de extermínio de crianças.

Os meninos e meninas praticavam pequenos furtos e, para impedi-los, os comerciantes contratavam seguranças. Na prática, no entanto, esses "seguranças" assassinavam as crianças. Quando eram encaminhadas à Fubem, as crianças também sofriam maus tratos.

O PMMR, então, ia para as ruas atender diretamente essas crianças. Na praça Lauro Gomes em São Bernardo, ficava o escritório dos "matadores". Os educadores iam para a praça proteger os meninos, pois quando eles estavam lá, os "justiceiros" sentiam-se intimidados. Todo o trabalho era feito de forma voluntária.

Na Rua dos Vianas, foi montado um restaurante que oferecia refeições aos meninos. A organização ainda não tinha consciência dos problemas causados pelo trabalho infantil e ajudava os engraxates a comprarem graxa por um bom preço.

Ação política - Na madrugada do dia 3 de setembro de 1987, seis meninos foram assassinados dentro do espaço onde eram atendidos. A chacina foi um marco importante na história da ONG, que passou a se organizar melhor. O PMMR ganhou ainda um forte caráter político e começou a lutar mais efetivamente pelos direitos da criança e do adolescente.

O PMMR começou a trabalhar a consciência política e cidadã das crianças que atendia. Assim, na luta contra a ditadura e durante a Campanha das Diretas Já, os meninos estiveram presentes. Em 88, recolheram assinaturas para o estabelecimento do artigo 227 da Constituição que trata de seus direitos. Nos anos 90, novamente ajudaram a escrever o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Esse caráter político da entidade mantém-se até hoje. Mangolin diz que os garotos são constantemente informados sobre seus direitos e que a orientação dos educadores é ter sempre presente a discussão do ECA durante as oficinas culturais. "Acima de tudo, o menino que é atendido aqui tem que saber que existe uma lei que garante seus direitos e que, se esses não estão sendo cumpridos, ele deve se organizar com os outros meninos para exigir seu cumprimento", diz Mangolin.

Acompanhamento familiar - O assessor ainda diz que, atualmente, a atenção à família é muito valorizada. Todas são atendidas. Entretanto, em casos especiais, algumas delas são acompanhadas constantemente por um grupo de educadores. "A realidade hoje é diferente dos anos 80. Naquela época, havia muitas oportunidades de emprego no ABC. Agora, é o contrário. Você tem um desemprego estrutural e o menino é obrigado a ir para a rua vender coisas, pedir esmola, cuidar de carro. De que adianta o menino saber que ele não deve trabalhar, que tem que ir para a escola ou praticar esportes, se na casa dele ele não tem o que comer e vestir? Quem precisa de apoio é a família dessa criança", diz.

Lourdes considera o acompanhamento familiar importante porque os pais não têm consciência do que é trabalhar na rua. "Sem saber muito, os pais acabam perdendo seus filhos, achando que estão ajudando. Mas o medo de voltar para a casa sem dinheiro, leva o menino a roubar e se envolver com drogas". A educadora comenta que hoje já não existem os exterminadores pagos por comerciantes. "Agora são as drogas que os seduzem e os matam".

Falta de oportunidade - José Eduardo dos Santos, 18 anos, estudante, foi atendido pelo PMMR. Ele conta que quando começou a freqüentar o Projeto em 1997 trabalhava na rua, fazendo carretos e tomando conta de carros. "Eu ia ao PMMR só para me divertir, jogar bola e brincar. Quando eles viram que eu estava amadurecendo, me encaminharam para fazer cursos profissionalizantes. Conseguiu um emprego na Prefeitura, onde trabalhei por um ano e sete meses".

Hoje, apesar da experiência e com o currículo pronto, José Eduardo não consegue emprego e teve que voltar para a feira. "Se não fossem eles [PMMR], hoje eu estaria roubando. Já me ofereceram para entrar nessa vida. Mas eu sou 'cabeça', e não fui. Só há dois caminhos para isso: morte, ou cadeia. E eu quero o meu bem. Meu irmão morreu nisso. Não quero o mesmo para mim", diz.

De acordo com dados do último relatório do PMMR (de 2002), existem 484 meninos em situação de rua em São Bernardo. Anderson Mangolin diz que o número de crianças novas que vão para as ruas vem crescendo desde 2000. Neste ano, foram atendidos pelo Projeto, 410 crianças. Em 2001, foram 457. No primeiro trimestre de 2003, 111 meninos e meninas foram para a rua. No segundo trimestre, os números tiveram um acréscimo de 43% em relação ao mesmo período do ano passado.

Ele diz que isso acontece em decorrência da situação econômica do país, mas afirma que o número total de crianças nas ruas de São Bernardo vem diminuindo porque, apesar da demanda aumentar, o Projeto tem conseguido atender cada vez mais crianças.

O trabalho do PMMR cresceu muito depois de que foi estabelecido, em 1998, um convênio com a Prefeitura de São Bernardo. Hoje, a ONG é mantida pela Fundação Criança, da Prefeitura, e por outras doações de grupos nacionais e internacionais. Mas Mangolin afirma que a maior deficiência da organização ainda é a captação de recursos.

No próximo dia 15 de setembro, o Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo vai assinar um convênio com a Prefeitura de Guarulhos. O Projeto provavelmente passará e se chamar Projeto Meninos e Meninas de Rua do Estado de São Paulo. Uma nova sede será construída em Guarulhos e a organização está procurando educadores sociais com experiência em educação de rua.

Os interessados podem enviar seus currículos para Anderson Mangolin pelo e-mail Anderson

O presidente, Ademar Carlos de Oliveira diz que, nesses 20 anos, a maior conquista do PMMR foi ter construído uma metodologia que é referência nacional. "Nós temos uma experiência para partilhar. A conquista de espaço em Guarulhos é um misto de presente e de desafio, pois nós sabemos que estamos indo para esse ambiente porque podemos ajudar crianças e adolescentes em situação de extrema necessidade, mas o nosso maior objetivo é acabar com o Projeto. Porque enquanto existir menino e menina de rua, continuaremos existindo e não queremos que essa situação se mantenha".

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