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Mãe de interno padece na República
Por Evaldo Mocarzel / Diário do Comércio   23 de junho de 2004
Como as célebres mães da Praça de Mayo, da Argentina, que se tornaram símbolo em todo o mundo de luta pelos direitos humanos, as mães da organização não-governamental Amar (Associação das Mães e Amigos das Crianças e Adolescentes em Risco) estão se reunindo semanalmente, há um ano, na Praça da República, no centro de São Paulo, para protestar contra maus tratos, atos de tortura e o confinamento dos adolescentes em cárceres privados dentro das instalações da Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (Febem).
"Queremos Justiça", "Queremos que o Poder Judiciário Cumpra o seu Papel" e "Abaixo a Tortura" são alguns dos dizeres estampados nos cartazes que elas levam para os encontros na Praça da República, toda quarta-feira, a partir das 15h.
As mães não negam os delitos de seus filhos, mas querem chamar a atenção da sociedade para a falta de um tratamento adequado para a recuperação dos adolescentes, como capacitação técnica, tratamento psicológico, programa anti-drogas, projeto pedagógico, profissionalização, atendimento social às famílias, encaminhamento ao mercado profissional ou à escola, enfim, tudo que for necessário para dar ao jovem estrutura para não voltar ao crime.
A Amar foi criada em 1999 e hoje já conta com duas sedes em São Paulo: no centro, bem perto da Praça da República, e em Cidade Tiradentes, na zona leste. A ONG possui um grupo de seis educadores, uma equipe de consultoria jurídica chefiada pela advogada Karina Sposato e conta com apoio financeiro do Unicef, além de uma parceria com a Secretaria de Direitos Humanos.
No final de 2002, a Amar foi convidada para abrir uma filial da organização na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Em junho do ano passado, abriu uma nova filial em Ribeirão Preto. Recentemente foram mais dois convites: Brasília e Piauí. Os convites foram feitos após a morte de dois meninos dentro de uma unidade de internação de menores em Brasília e de mais sete no Piauí.
A Amar tem hoje um cadastro com mais de 500 mães cujos filhos estão ou passaram pela Febem, se encontram em situação de liberdade assistida ou foram assassinados dentro de suas instalações. "A idéia é levar esse movimento para todo o Brasil", diz Conceição Paganele, 49 anos, presidente-fundadora da Amar. "Somos mães, irmãs, esposas e avós que têm ou tiveram seus entes queridos nessa situação de risco", explica.
História triste – O sofrimento enfrentado por Conceição Paganele é uma história que merece ser contada, pois se repete em muitas outras mães que se dirigem à Amar em busca de ajuda e orientação. Conceição tem ao todo seis filhos, sendo um adotivo. O último filho, Cássio, hoje com 22 anos e confinado num presídio, perdeu o pai muito menino, com apenas três anos de idade. O pai era metalúrgico e deixou uma pequena pensão para Conceição.
Cássio sempre foi o xodó da família, muito agarrado com a mãe. Com 15 anos, experimentou maconha na escola onde estudava, Wladimir Herzog, em Cidade Tiradentes. Depois da maconha, experimentou cocaína. "Quando eu descobri, o mundo se acabou para mim", lembra Conceição.
"Ele começou a não me olhar de frente. Pensei que era coisa da adolescência, pois ele sempre foi muito manhoso. De repente, despertou nele o desejo de ir para a escola. Comecei a ficar desconfiada. Na hora do intervalo, ele usava droga lá dentro. Não tive problema com os outros filhos. Só que o Cássio cresceu sem a figura masculina. Tive que ser pai e mãe ao mesmo tempo", desabafa.
Começou então a sumir dinheiro dentro de casa. Os CDs da estante foram desaparecendo. Cássio não demorou a contrair dívidas com traficantes, que inicialmente foram pagas por Conceição. "Eu perdi todo o meu sossego", conta.
"Peguei até dinheiro com agiotas, mas eu não conseguia pagar as dívidas que ele foi contraindo. Aí ele começou a roubar: rodas e som de carros para poder sustentar o vício. Cássio tentou vender droga, mas ele cheirava toda a cocaína do traficante. Acabou na Febem."
Na primeira internação na Febem, Conceição confessa que se sentiu aliviada. "Uma assistente social me ligou. Achei fantástico. Logo viram que o problema dele era dependência química. Ele não se sentia atraído pelo mundo infracional, mas pela droga. E eu consegui tirá-lo de lá e o coloquei numa clínica evangélica de recuperação, mesmo sem ter condições de pagar. Cássio acabou fugindo da clínica. Tornou-se um fugitivo da Febem. Eu acabei alugando um porão num outro bairro e fiquei lá, oito meses, escondida morando com ele."
O desencanto de Conceição com a Febem começou quando ela viu o filho pela primeira vez após a internação. "Ele estava com uma escova de dente velha pendurada no pescoço. Achei aquilo horrível. Os meninos choravam muito. Meu filho também começou a chorar. Queria ir embora. Ficava o dia inteiro lá dentro sem atividades. Ele apanhava muito lá dentro."
Socialização – Conceição conta que conseguiu levar Cássio para uma unidade da Febem no Tatuapé, na época dirigida pelo psicólogo José Resende. "Nessa unidade, era feita a socialização dos jovens. As mães tinham liberdade de entrar e sair durante a semana, faziam faxina, preparavam comida. Mas a 'estrutura soberana da Febem' acabou obrigando o José Resende a pedir para sair", lamenta.
Cássio logo tentou fugir e quebrou os calcanhares após uma queda. "Eu nem fui comunicada", garante. "O menino corria risco de perder a perna direita. Colocou platina nos pés e hoje anda com dificuldade, se arrastando", conta. Cássio teve nova recaída e passou a usar mais droga.
Havia experimentado crack. "Ele passava noites inteiras sem dormir, vendo olhos espiando ele o tempo todo no telhado", lembra. "Ele sentia bichos e insetos caindo em cima dele. Dizia que estava sentindo um 'gelo na alma'. Pegava uma arma e apontava para mim. Ele me via como um bicho. Dizia que a imagem da mãe sumia e, de repente, ele via um monstro."
Após mais oito meses na Febem, Cássio saiu novamente em liberdade assistida. Durante quatro meses, não usou drogas. No entanto, teve outra recaída. "A gente chega num estado que começa a facilitar as coisas para um filho viciado. Eu colocava dinheiro para ele pegar quando via que ele estava tendo um acesso de desespero de tanta necessidade pela droga." Cássio hoje está preso em Taubaté.
Protestos – A Amar surgiu de uma convocação feita por Conceição Paganele, que reuniu 32 mães, para protestar contra a saída do psicólogo José Resende da unidade da Febem em Tatuapé. "Ele realmente queria mudar a cultura da Febem, com cursos de formação profissionalizante e o resgate da cidadania e dos direitos dos adolescentes", diz.
"A Febem não quer que ninguém faça um bom trabalho. O suporte de tudo é a tortura e o espancamento. O José Resende acreditava em outros valores." Conceição lembra que, no dia 22 de janeiro deste ano, houve duas mortes por arma de fogo dentro Febem. "Existe um escalão, uma hierarquia que quer manter a situação do jeito que está", reclama.
"São tantos cargos de confiança que ninguém responde por nada. É uma estrutura doentia. Os monitores é que acabam respondendo pelas denúncias e eles estão cumprindo ordens. Nunca se consegue chegar ao fim das investigações. O que acontece com os meninos lá dentro?"
As manifestações na Praça da República têm por objetivo chamar a atenção da opinião pública para os maus tratos enfrentados pelos adolescentes dentro da Febem, mas também apontar soluções. "Em primeiro lugar, é preciso que seja feita uma seleção melhor dos funcionários. Lidar com o ser humano é muito difícil. A Febem precisa de profissionais que tenham um pouco de amor pelo que estão fazendo", diz.
Ela sugere unidades menores, "descentralizadas e regionalizadas". "A lei exige que sejam colocados no máximo 40 meninos em cada unidade da Febem. A Amar defende 20. As unidades têm 100, 150, 200, 300. É preciso que os meninos sejam divididos por idade. É preciso dar a eles educação, cultura, lazer, cursos profissioanlizantes. A sociedade é muito preconceituosa! Como acolher o menor sem o rótulo de infrator, de drogado? É preciso conscientizar os meninos das conseqüências dos atos cometidos, mas sem deixar de valorizar a sua auto-estima. Dizem que o custo de um adolescente por mês, dentro da Febem, é de R$ 1.800 a R$ 2.500. Só pode ser falta de vontade política em querer reverter essa situação."
"Queremos Justiça", "Queremos que o Poder Judiciário Cumpra o seu Papel" e "Abaixo a Tortura" são alguns dos dizeres estampados nos cartazes que elas levam para os encontros na Praça da República, toda quarta-feira, a partir das 15h.
As mães não negam os delitos de seus filhos, mas querem chamar a atenção da sociedade para a falta de um tratamento adequado para a recuperação dos adolescentes, como capacitação técnica, tratamento psicológico, programa anti-drogas, projeto pedagógico, profissionalização, atendimento social às famílias, encaminhamento ao mercado profissional ou à escola, enfim, tudo que for necessário para dar ao jovem estrutura para não voltar ao crime.
A Amar foi criada em 1999 e hoje já conta com duas sedes em São Paulo: no centro, bem perto da Praça da República, e em Cidade Tiradentes, na zona leste. A ONG possui um grupo de seis educadores, uma equipe de consultoria jurídica chefiada pela advogada Karina Sposato e conta com apoio financeiro do Unicef, além de uma parceria com a Secretaria de Direitos Humanos.
No final de 2002, a Amar foi convidada para abrir uma filial da organização na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Em junho do ano passado, abriu uma nova filial em Ribeirão Preto. Recentemente foram mais dois convites: Brasília e Piauí. Os convites foram feitos após a morte de dois meninos dentro de uma unidade de internação de menores em Brasília e de mais sete no Piauí.
A Amar tem hoje um cadastro com mais de 500 mães cujos filhos estão ou passaram pela Febem, se encontram em situação de liberdade assistida ou foram assassinados dentro de suas instalações. "A idéia é levar esse movimento para todo o Brasil", diz Conceição Paganele, 49 anos, presidente-fundadora da Amar. "Somos mães, irmãs, esposas e avós que têm ou tiveram seus entes queridos nessa situação de risco", explica.
História triste – O sofrimento enfrentado por Conceição Paganele é uma história que merece ser contada, pois se repete em muitas outras mães que se dirigem à Amar em busca de ajuda e orientação. Conceição tem ao todo seis filhos, sendo um adotivo. O último filho, Cássio, hoje com 22 anos e confinado num presídio, perdeu o pai muito menino, com apenas três anos de idade. O pai era metalúrgico e deixou uma pequena pensão para Conceição.
Cássio sempre foi o xodó da família, muito agarrado com a mãe. Com 15 anos, experimentou maconha na escola onde estudava, Wladimir Herzog, em Cidade Tiradentes. Depois da maconha, experimentou cocaína. "Quando eu descobri, o mundo se acabou para mim", lembra Conceição.
"Ele começou a não me olhar de frente. Pensei que era coisa da adolescência, pois ele sempre foi muito manhoso. De repente, despertou nele o desejo de ir para a escola. Comecei a ficar desconfiada. Na hora do intervalo, ele usava droga lá dentro. Não tive problema com os outros filhos. Só que o Cássio cresceu sem a figura masculina. Tive que ser pai e mãe ao mesmo tempo", desabafa.
Começou então a sumir dinheiro dentro de casa. Os CDs da estante foram desaparecendo. Cássio não demorou a contrair dívidas com traficantes, que inicialmente foram pagas por Conceição. "Eu perdi todo o meu sossego", conta.
"Peguei até dinheiro com agiotas, mas eu não conseguia pagar as dívidas que ele foi contraindo. Aí ele começou a roubar: rodas e som de carros para poder sustentar o vício. Cássio tentou vender droga, mas ele cheirava toda a cocaína do traficante. Acabou na Febem."
Na primeira internação na Febem, Conceição confessa que se sentiu aliviada. "Uma assistente social me ligou. Achei fantástico. Logo viram que o problema dele era dependência química. Ele não se sentia atraído pelo mundo infracional, mas pela droga. E eu consegui tirá-lo de lá e o coloquei numa clínica evangélica de recuperação, mesmo sem ter condições de pagar. Cássio acabou fugindo da clínica. Tornou-se um fugitivo da Febem. Eu acabei alugando um porão num outro bairro e fiquei lá, oito meses, escondida morando com ele."
O desencanto de Conceição com a Febem começou quando ela viu o filho pela primeira vez após a internação. "Ele estava com uma escova de dente velha pendurada no pescoço. Achei aquilo horrível. Os meninos choravam muito. Meu filho também começou a chorar. Queria ir embora. Ficava o dia inteiro lá dentro sem atividades. Ele apanhava muito lá dentro."
Socialização – Conceição conta que conseguiu levar Cássio para uma unidade da Febem no Tatuapé, na época dirigida pelo psicólogo José Resende. "Nessa unidade, era feita a socialização dos jovens. As mães tinham liberdade de entrar e sair durante a semana, faziam faxina, preparavam comida. Mas a 'estrutura soberana da Febem' acabou obrigando o José Resende a pedir para sair", lamenta.
Cássio logo tentou fugir e quebrou os calcanhares após uma queda. "Eu nem fui comunicada", garante. "O menino corria risco de perder a perna direita. Colocou platina nos pés e hoje anda com dificuldade, se arrastando", conta. Cássio teve nova recaída e passou a usar mais droga.
Havia experimentado crack. "Ele passava noites inteiras sem dormir, vendo olhos espiando ele o tempo todo no telhado", lembra. "Ele sentia bichos e insetos caindo em cima dele. Dizia que estava sentindo um 'gelo na alma'. Pegava uma arma e apontava para mim. Ele me via como um bicho. Dizia que a imagem da mãe sumia e, de repente, ele via um monstro."
Após mais oito meses na Febem, Cássio saiu novamente em liberdade assistida. Durante quatro meses, não usou drogas. No entanto, teve outra recaída. "A gente chega num estado que começa a facilitar as coisas para um filho viciado. Eu colocava dinheiro para ele pegar quando via que ele estava tendo um acesso de desespero de tanta necessidade pela droga." Cássio hoje está preso em Taubaté.
Protestos – A Amar surgiu de uma convocação feita por Conceição Paganele, que reuniu 32 mães, para protestar contra a saída do psicólogo José Resende da unidade da Febem em Tatuapé. "Ele realmente queria mudar a cultura da Febem, com cursos de formação profissionalizante e o resgate da cidadania e dos direitos dos adolescentes", diz.
"A Febem não quer que ninguém faça um bom trabalho. O suporte de tudo é a tortura e o espancamento. O José Resende acreditava em outros valores." Conceição lembra que, no dia 22 de janeiro deste ano, houve duas mortes por arma de fogo dentro Febem. "Existe um escalão, uma hierarquia que quer manter a situação do jeito que está", reclama.
"São tantos cargos de confiança que ninguém responde por nada. É uma estrutura doentia. Os monitores é que acabam respondendo pelas denúncias e eles estão cumprindo ordens. Nunca se consegue chegar ao fim das investigações. O que acontece com os meninos lá dentro?"
As manifestações na Praça da República têm por objetivo chamar a atenção da opinião pública para os maus tratos enfrentados pelos adolescentes dentro da Febem, mas também apontar soluções. "Em primeiro lugar, é preciso que seja feita uma seleção melhor dos funcionários. Lidar com o ser humano é muito difícil. A Febem precisa de profissionais que tenham um pouco de amor pelo que estão fazendo", diz.
Ela sugere unidades menores, "descentralizadas e regionalizadas". "A lei exige que sejam colocados no máximo 40 meninos em cada unidade da Febem. A Amar defende 20. As unidades têm 100, 150, 200, 300. É preciso que os meninos sejam divididos por idade. É preciso dar a eles educação, cultura, lazer, cursos profissioanlizantes. A sociedade é muito preconceituosa! Como acolher o menor sem o rótulo de infrator, de drogado? É preciso conscientizar os meninos das conseqüências dos atos cometidos, mas sem deixar de valorizar a sua auto-estima. Dizem que o custo de um adolescente por mês, dentro da Febem, é de R$ 1.800 a R$ 2.500. Só pode ser falta de vontade política em querer reverter essa situação."