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Cartas para quem tem o que dizer, mas não sabe escrever

Por Lúcia Helena de Camargo   13 de outubro de 2004
Os Correios cobram R$ 0,01 pelo selo de uma "carta social". Essa modalidade foi criada, de acordo com o órgão, para "facilitar o acesso aos serviços postais às camadas menos favorecidas de nossa população". Ocorre, porém, que apesar do preço baixo, parte dessa camada pouco favorecida não consegue fazer uso do selo de um centavo por faltar-lhe uma ferramenta essencial: a capacidade de escrever.

Inspirado em Dora, personagem do filme Central do Brasil que escrevia cartas na estação de trem carioca, surgiu o projeto "Escreve Cartas", para ajudar essas pessoas. Foi implantado em outubro de 2001 em dois Poupatempo da cidade: Santo Amaro e Itaquera. Na história filmada por Walter Salles, a missivista cobrava R$ 1 por carta remetida. No órgão oficial o serviço é gratuito e inclui papel, envelope e o selo social.

Em uma quinta-feira à tarde, a professora de educação física Patrícia de Carvalho, em seu primeiro dia de voluntária no Poupatempo Santo Amaro, lamentava-se por não ter conseguido começar a trabalhar. "Ainda não escrevi nenhuma: acho que muita gente não sabe da existência deste serviço."

O sergipano Jackson Cruz procura ajudar na divulgação. Aposentado, o voluntário circula pelos arredores informando que há ali um serviço gratuito que escreve cartas e preenche formulários. "Nos dias em que ele vem, aumenta muito o volume de usuários do Escreve Cartas", elogia Ilídio Júnior, gerente do Poupatempo Santo Amaro. Uma das pessoas informadas por Cruz, Maria da Conceição dos Santos, 66 anos, analfabeta, resolveu experimentar e escreveu sua primeira carta. "Precisa ser para alguém que mora longe, moça?", questionou. Diante da negativa, resolveu mandar por escrito as palavras que gostaria de dizer à filha, de quem é vizinha. "Nós moramos na mesma rua, mas ela trabalha e a gente quase nunca se encontra, então resolvi falar para ela me visitar mais."

Carta de amor – O segurança Francisco Antônio Finizola Neto escreveu uma carta para sua mulher. Alfabetizado, mas com dificuldade em colocar os pensamentos no papel, escolhe com cuidado as palavras ditadas à voluntária, que seguirão para seu próprio endereço, numa surpresa para a esposa. "Estou declarando meu amor por ela em uma carta, de um jeito que nunca fiz antes."

Os voluntários não revelam a ninguém o teor dos escritos e também não fazem qualquer comentário, seja qual for o texto que esteja sendo ditado pelo autor da missiva. A professora Maria Aparecida Mangeli, voluntária há três meses, admite que se envolve com os problemas relatados pelas pessoas. "Eu me emociono, porque alguns chegam aqui com dramas muito sérios", conta. A emoção, porém, não se sobrepõe à discrição. "Mesmo quando fico tocada pela história descrita, ou então acho algo engraçado, não deixo transparecer e mantenho a compostura", diz.

A dona de casa Rosália Neves de Souza, de 69 anos, ditou uma carta que seria enviada para a irmã Josefa, de 81 anos, moradora de Apará, no Estado da Bahia. Ela estudou até a quarta série do Ensino Fundamental. "Eu leio mais ou menos, mas sou péssima em escrever", diz. Ao colocar o envelope na caixa de correio, experimentava a expectativa em relação à resposta, comum a todos que enviam uma carta. "Tomara que ela me responda logo."

Destinatário: Jesus Cristo – As voluntárias mantém uma lista com nomes e endereços de artistas, personalidades, governantes e políticos, não raro solicitados como destinatários. Ao presidente Lula é enviado um grande volume de correspondência, mas o campeão de pedidos é o apresentador Netinho, para quem são remetidas cartas dos interessados em participar de seu programa de TV, que promete realizar sonhos de consumo dos cidadãos. Há ainda quem faça pedidos, digamos, difíceis. Uma senhora (cujo nome os voluntários preferem não divulgar) ficou conhecida no Poupatempo porque toda semana quer enviar uma carta para Jesus Cristo. "Ela insiste para que seja escrita a carta, e quando dizemos que precisamos do endereço do destinatário, fala: 'Manda para a igreja!' ", conta uma voluntária. A mulher precisa ser toda vez convencida da impossibilidade em se remeter a carta, saindo dali contrariada. Mas sempre volta com o mesmo pedido.

Além do serviço prestado dentro do Poupatempo, há voluntários que se correspondem com pessoas que vivem em casas de repouso, no projeto "Adote um idoso por correspondência". A troca de correspondências não apenas ajuda o idoso a sentir-se menos sozinho, mas o voluntário acaba também gostando da troca de experiências. "A correspondência estabelece um vínculo entre as duas partes, e todos ficam ansiosos pela carta seguinte: é muito saudável e gostoso", diz Margot Molnar Cintra, coordenadora administrativa do Projeto Escreve Cartas.

Com estatísticas atualizadas até julho deste ano, o Poupatempo Santo Amaro registra um total de 40.238 atendimentos do Projeto Escreve Cartas desde a sua implantação. Em Itaquera, no mesmo período, foram 18.822. Já os Poupatempo da Luz e da Sé não prestam esse serviço aos usuários.

Qualquer pessoa pode ser um escrevedor de cartas. Basta ser alfabetizado e disponibilidade para prestar o serviço por pelo menos duas horas por semana, em um dos dois Poupatempo. Para ser voluntário, é preciso procurar o Centro de Voluntariado de São Paulo, que encaminha o interessado ao treinamento.

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