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O verdadeiro significado da palavra cidadania

Por Jornal Valor - Paulo Saab    9 de novembro de 2001
Termo raramente vem atrelado a movimentos ou intenções de organização da sociedade.

Cidadania: s.f. qualidade ou estado de cidadão. Cidadão: s.m. 1.Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado ou no desempenho de seus deveres para com este. 2.Habitante da cidade. 3. Pop.Indivíduo, homem, sujeito.

As definições são do Novo Dicionário Aurélio. Interessante notar que, no conceito de cidadania, não se encontram embutidas as palavras "nação" e nem "direitos" fora do âmbito da sujeição do cidadão ao Estado.

Nos últimos anos, de algum modo, o emprego da palavra "cidadania" acabou por banalizar seu significado prático, uma vez que o conceitual é de difícil entendimento naquilo que tem de mais profundo: a identificação de cada um com os valores comuns que fazem a existência de uma "nação" livre e soberana, dentro de um território ocupado por um povo.

Entendamos aqui por "livre e soberana", para evitar chavões e confusões, a capacidade do povo que habita um território de se auto-organizar, determinar e definir seus valores comuns, sua forma de governo e representação, as regras às quais todos estarão sujeitos, e a partir das quais terão sua capacidade de exercitar obrigações e direitos. Parece pequena, mas é grande a diferença em relação à definição de dicionário.

Esta definição revela o que tem sido o destino dos brasileiros ao longo de toda sua história e processo de desenvolvimento, notadamente o cultural: devemos obrigações ao Estado . O Estado tutela a sociedade e a ele os cidadãos, os habitantes, estão atrelados, sem terem determinado isso.

Aí está a distancia existente ainda no Brasil entre sermos meros habitantes, pequena parte da cidadania, ou cidadãos, na plenitude da ação prática da palavra.

O termo cidadania tem sido usado especialmente no viciado ambiente político brasileiro para dar cobertura a qualquer tipo de promessa, ação ou contestação que envolva interesses de pessoas ou grupos em disputa.

Raramente, quando é usado, o termo vem atrelado a movimentos ou intenções de organização da sociedade brasileira, de busca de concentração de valores comuns e de redefinição dos papéis do Estado e do próprio cidadão na forma de organização, condução e representação de nossa sociedade.

Todos somos testemunhas de que, nas últimas décadas, outro termo tem sido empregado de forma intensa no cotidiano dos brasileiros sem ter se banalizado apesar de sua freqüência e intensidade. É a palavra "crise".

Entre tantas crises, há uma que é básica e até mais relevante, porque fundamental, do que a mais visível (a crise do Estado): é a crise de identidade.

O povo brasileiro ainda não possui uma identidade definida de si mesmo, nem exercita um conjunto de valores comuns aos quais todos se rendam e, acima disso, cultuem.

Não temos ainda um estilo brasileiro de viver. Ao contrário, temos diversos estilos de viver que ainda não permitem aos habitantes do país atuar como verdadeiros cidadãos, com capacidade de influir na condução dos destinos coletivos e de cada um. Quem faz isto por nós é o Estado brasileiro.

O Brasil nasceu em 1500, como diz sua certidão, assinada por Pero Vaz de Caminha. Até 1808 fomos colônia de regras impostas. A partir deste ano, com a chegada de Dom João VI e sua Corte, fugindo de Napoleão, o Brasil ganhou uma configuração de Estado (abertura dos portos, criação do Banco do Brasil, da Imprensa Nacional, igualmente imposta pelo poder real.

Um Estado concedido. Outorgado. De regras fundamentadas num outro Estado, concedente, de governo hereditário e sem a participação popular consagrada na concepção moderna de democracia, onde os governos são do povo, pelo povo e para o povo.

O povo só pode ser dono de si mesmo e elevar-se à categoria de "cidadão" se concebe e executa um "Estado" a partir da vontade de sua maioria, dos hábitos, anseios e objetivos comuns; se a sua organização, estrutura burocrática e formas de governo são definidas a partir da crença, dos valores comuns à sua maioria, e se o "Estado" é colocado a serviço desses valores e crenças para ser o mero gestor dos interesses coletivos, árbitro das desavenças e regulador da eficácia na consecução dos objetivos comuns.

Este é o Estado brasileiro atual? Tem sido assim desde 1808? Após a Independência? Após a República?

A natureza ensina que em tudo há um processo de amadurecimento natural. A sociedade brasileira, em meio às crises e seguindo a evolução do processo de miscigenação que suas diversas origens de imigração consolidam, caminha ainda desorganizada, mas de maneira irreversível, para ganhar consciência de sua necessidade de apuração de valores comuns, reorganização do Estado e diminuição de suas diferenças.

O grande caminho para se chegar à prática da "cidadania" dentro de uma verdadeira "nação", é o da educação, que dará luzes para o raciocínio consciente da maioria de seu povo. Povo educado pensa, reinvidica, cobra, participa, exerce e atua. Daí a importância da disseminação destes conceitos e da necessidade dos investimentos maciços em educação por parte da própria sociedade, sem depender de um Estado falido, em crise, principalmente, de origem e identidade. Um Estado que não se comunica com sua população, não a entende, não a representa e ainda pretende impor-lhe o destino.

Paulo Saab é presidente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento da Cidadania.

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