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Deficientes visuais vão ao teatro. É a tecnologia!

Por Sérgio Roveri / autor da peça Andaime   28 de março de 2007
O dedo indicador direito de Roger Martins Marques, 32 anos, desliza com agilidade sobre as seis páginas impressas em braile com o programa da peça Andaime , uma comédia sobre a rotina melancólica de dois limpadores de janelas de um grande edifício de São Paulo, em cartaz no Teatro Vivo. Deficiente visual desde o nascimento, Roger foi alfabetizado em braile e adquiriu uma velocidade de leitura semelhante à de uma pessoa com os olhos saudáveis. A esta conquista, pacientemente lapidada ao longo de anos de esforço pessoal, soma-se agora uma mais recente: Roger pôde, na semana passada, ir ao teatro sem o auxílio até então indispensável de um acompanhante que lhe sussurrasse no ouvido as ações do espetáculo.

Desenvolvido pela Vivo e lançado comercialmente na estréia da peça Andaime , um sistema de audiodescrição garante ao deficiente visual uma compreensão muito maior do que se passa no palco. Na entrada do teatro, eles recebem um fone de ouvido que irá transmitir, durante a encenação, a voz de uma voluntária com todas as informações sobre figurino e expressão dos atores, movimentação de cena, requintes do cenário e até nuances sobre a mudança de luz.

É a primeira vez que o sistema está sendo empregado em um teatro da América Latina. E acredito que ter uma peça de minha autoria escolhida para a implantação deste serviço foi um desses golpes de sorte aos quais o povo de teatro costuma se referir como uma benção dos deuses, um afago de Dionísio. Na estréia da peça, foi comovente ver, ao lado de Paulo Autran, Adriane Galisteu e Patrícia Travassos, entre outros atores e amigos que circulavam pelo saguão, um grande grupo de deficientes visuais, acompanhados de seus cães-guia, à espera do início da sessão. Mais do que uma simples estréia, aquela noite representou, para todos que estavam ali, um comovente exercício de cidadania e inserção social promovido pela cultura.

O sistema de audiodescrição é uma dessas idéias que, de tão simples e essenciais, remetem à pergunta imediata: como é que ninguém pensou nisso antes? Os voluntários treinados pela Vivo assistiram aos cinco últimos ensaios de Andaime antes da estréia – mais do que eu, que vi apenas um. Com a meticulosidade de um perito forense, eles anotaram todos os gestos dos atores, as expressões faciais, os muxoxos, o desenho da iluminação, a movimentação das cortinas e objetos cênicos. Esta radiografia minuciosa dos movimentos do espetáculo resultou em 17 páginas datilografadas – contra as 32 da peça propriamente dita. De posse destas anotações, os voluntários passaram vários dias envolvidos na complicada alquimia de encontrar, entre as pausas dos diálogos, o momento exato para encaixar cada sinalização. "Nós não podemos prejudicar os diálogos do espetáculo", diz a voluntária Rosilene Cotes de Almeida, que hoje deve saber bem mais da peça do que eu mesmo. "Temos de ser tão afinados quanto o elenco. Dizemos nossas falas no intervalo entre as falas deles. O deficiente não pode receber duas informações diferentes ao mesmo tempo".

Na noite de estréia eu não testei o equipamento. Preferi ficar observando o comportamento dos deficientes. Eles riam tanto que cheguei a ficar na dúvida: será que a peça é mesmo boa ou é o serviço dos voluntários que está dando uma ajuda e tanto? Só experimentei o serviço no terceiro dia da temporada. Foi uma experiência sensorial surpreendente: é muito estranho receber pelo ouvido toda a informação que, ao longo da vida, aprendemos a captar pelo olhar. O desejo de abrir os olhos e voltar ao nosso universo conhecido, o mundo da luz, foi incontrolável. Confesso, por mais egoísta que isso possa parecer, que é uma dádiva poder captar todas as informações deste mundo com os sentidos perfeitos com os quais Deus nos dotou.

Alguns dias depois da estréia, recebi o e-mail de um deficiente visual. Na mensagem, que guardo no arquivo do meu computador, ele elogiava muito a peça e a iniciativa da Vivo. Mas não foi o elogio que me seduziu. De tudo que ele escreveu, uma frase não sai da minha cabeça: "Depois de 30 anos de escuridão, naquela noite eu voltei a ser um cidadão de novo".

É o tipo de mensagem que faz tudo valer a pena.

Andaime , em cartaz no Teatro Vivo, Avenida Doutor Chucri Zaidan, 860. Sexta às 21h30, sábado às 21h e domingo às 18h.

Serviço de audiodescrição para deficientes visuais disponível nas sessões de sexta-feira. É necessário fazer reservas pelo telefone (11) 5105-1520.

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