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Quando a dança é um prodígio

Por Jornal O Estado de S. Paulo / GLÁUCIA LEAL e SÉRGIO CASTRO   2 de janeiro de 2002
Foto de Apoio Agência Estado / Sérgio Castro Equilíbrio, expressão corporal e ritmo estão entre os primeiros aprendizados das meninas do Instituto de Cegos Padre Chico: grupo ganhou 14 prêmios este ano e planeja apresentar-se no exterior
Atentas ao ritmo e ao equilíbrio, deficientes visuais sobem ao palco para encantar

Atentas à música e às marcações do ritmo, as bailarinas movimentam-se ágeis pelo palco. Dançam em perfeita harmonia com as demais colegas em cena.

Só que não as vêem. São todas deficientes visuais e participam de um grupo de balé, mantido pelo Instituto de Cegos Padre Chico, no Ipiranga, zona sul de São Paulo. O que para muitos pode parecer impossível, para as integrantes traduz mais que um sonho: é a realidade das meninas sem visão, flutuando ao som da melodia.

A deficiência não parece comprometer o resultado do trabalho. Só este ano o grupo de dança já recebeu 14 premiações. "Não quero que elas tenham reconhecimento por serem cegas, mas por dançarem com qualidade", diz a professora Fernanda Bianchini. Formada em balé clássico e fisioterapeuta por profissão, ela ministra aulas de dança voluntariamente na instituição há oito anos. Graças à sua insistência em inscrever as alunas em festivais especializados foi criada, no Brasil, uma categoria de dança específica para portadores de deficiências.

No dia 15, as 27 alunas, com idades entre 4 e 20 anos, apresentaram-se em um espetáculo com 25 coreografias e duas horas de duração, no teatro do Instituto Padre Chico. A proposta de montar o grupo partiu da coordenadora da entidade, irmã Madalena Marques. Para Fernanda, o convite para ensinar transformou-se em desafio.

"Sempre ouvi dizer que para dançar era preciso enxergar e várias professoras me desaconselharam a trabalhar com deficientes visuais", conta. O trabalho com as meninas cegas mostrou que estavam enganadas. Aos poucos, Fernanda desenvolveu seu próprio método, pioneiro, para ensinar. Primeiro, ela estimula noções espaciais, expressão corporal e ritmo. O aprendizado dos passos é feito por meio de toque e imitação. As meninas tocam o corpo da professora e repetem os gestos, orientando-se pelas marcações da música.

No início do aprendizado, o equilíbrio é um ponto que requer especial atenção. O que não falta por parte das alunas, entretanto, é empenho. As aulas com a professora acontecem só uma vez por semana, mas as bailarinas se reúnem, pontualmente, três outros dias, para ensaiar sozinhas.

"Eu me apaixono pelas coreografias", diz a estudante Marina Alonso Guimarães, de 15 anos, desde 97 no grupo. Apesar de só enxergar vultos, de forma precária, desde pequena ela andava de bicicleta e patins em lugares conhecidos. "Isso me deixou mais independente."

Sua colega Carla Cristina Lopes, de 17 anos, lembra-se muito vagamente de ter visto cenas de balé quando ainda era muito pequena. Depois disso, perdeu totalmente a visão. A verdadeira descoberta da dança, para ela, deu-se quando tinha 13 anos. "Não queremos que achem que somos 'coitadinhas' e dançamos 'bonitinho' só porque não enxergamos", diz.

Na opinião da irmã Madalena, uma das vantagens do balé é desenvolver a auto-estima nas crianças e adolescentes. "Depois que entrei para o grupo me sinto mais confiante", atesta Aldenice de Souza Moreira, de 16 anos. Cega, como suas outras duas irmãs, quer avançar nos estudos para participar de apresentações fora do instituto com as alunas mais experientes.

O grupo apresentou-se, em julho, no Festival de Inverno de Campos do Jordão, participou de programas de televisão e recebeu vários convites para dançar em outras cidades, geralmente no próprio Estado. Mas Fernanda sonha mais alto. "Minha intenção é que elas se apresentem em espetáculos fora do Brasil", diz.

Ela sabe, porém, que para isso o grupo precisa de patrocínio. "Infelizmente, a maioria de nossas alunas vêm de famílias de pouco poder aquisitivo." Para confeccionar fantasias e custear viagens o grupo recorre à venda de rifas e ajuda de conhecidos. "Em geral não peço dinheiro, mas sim que ofereçam um par de sapatilhas, por exemplo."

Como Fernanda faz questão de que o grupo concorra em condições de igualdade com os demais participantes, a própria instituição arca com as despesas de inscrição, em geral por volta de R$ 50,00 por bailarina, transporte e alimentação. A professora calcula que se obtivesse patrocínio de R$ 1 mil por mês já poderia trabalhar com mais tranqüilidade.

Ela tem planos de conseguir, para cada menina, um ponto eletrônico no ouvido para as apresentações. Isso possibilitaria que as orientasse durante o espetáculo, o que tornaria a movimentação mais segura no palcos desconhecidos, onde a possibilidade de um tombo é maior. "Enquanto não temos esse recurso, fico da coxia, gritando para que cheguem mais para a frente ou para trás." Outra ambição de Fernanda é ter uma sala de ensaio com barra e espelho, para poder corrigir os movimentos das alunas com maior precisão.

Enquanto não consegue tudo o que precisa, não se cansa de ensinar: "Uma bailarina deve sempre olhar para as estrelas, ainda que não as enxergue."

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