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Os missionários da saúde
Por Revista Época    4 de janeiro de 2002
Em Niterói, os médicos de família cuidam dos pobres, mas são cobiçados pela
classe média
“Alguma queixa de dor, dona Francisca?” Os olhos embaçados pelo tempo – 93 anos – fitam o jovem de 25. Dor, não sente. A coceira, em compensação, não tem dia nem hora para atacar. Ilton tira o estetoscópio da maleta e continua proseando com a paciente, uma anciã negra, de cabelos alvos. Sentam-se no sofá de napa puída, em um barraco da Favela Nova Brasília, na Zona Norte de Niterói. Ele tira-lhe a pressão arterial. Apalpa-lhe o corpo mirrado. Investiga tudo, da cabeça aos pés. Não se morre de coceira, mas, que incomoda, ninguém duvida. O médico decide intrometer-se na rotina do barraco. “Dona Francisca, não dá para continuar picando pano dentro de casa. Tem de ser no quintal, a céu aberto, longe do sofá e das camas. A senhora está com sarna.” A paciente leva um susto. Quase centenária, porém lúcida, é ela quem mantém a família que lhe resta – uma filha de 70 anos e dois bisnetos. Toda semana, Francisca Ribeiro vai até uma confecção das redondezas catar restos de tecido. Muitos chegam imundos a suas mãos. Em casa, ela transforma fardos em retalhos, para revendê-los a um estaleiro fluminense que os utiliza em serviços de limpeza. Fatura meio salário mínimo por mês. E é disso que sobrevive.
O rapaz de jaleco branco conhece bem a história. Se viesse a esquecer algum detalhe, consultaria fichas que ele preenche de próprio punho para integrar o acervo de informações de saúde sobre os 8 mil moradores de uma das mais violentas favelas de Niterói. Quando desce as ladeiras de Nova Brasília, tem certeza do tratamento a prescrever: banhos diários de benzoato de benzila, composto químico para combater a escabiose. Voltará ao barraco no mesmo dia levando o medicamento para aliviar a coceira da catadora de panos. Nascido em Trajano de Morais, no interior do Rio de Janeiro, Ilton Magalhães Jr. transformou-se num profissional fora dos padrões preconizados pela maioria das faculdades de medicina do país. É um médico de família. No métier, já se sabe o que isso significa. Trata-se de um clínico generalista, capaz de atender de pacientes com sarna a portadores de HIV, sem jamais perder de vista a moldura social que contorna as questões de saúde. “Se eu não tivesse feito essa opção de trabalho, já teria abandonado a medicina”, admite o clínico, recém-saído da residência.
Não é de hoje que Niterói aposta em profissionais com esse perfil. Em torno do clínico generalista, uma figura em extinção nos hospitais – cada vez mais nas mãos de especialistas –, a prefeitura do município compôs um programa pioneiro que, com mudanças de estilo e enfoque, vem sendo reproduzido em diversos pontos do país. Nele, aprende-se que 80% dos problemas de saúde da população podem ser resolvidos com um atendimento primário eficiente, estável, gratuito, voltado acima de tudo para a qualidade de vida, e não só para a cura da doença. Ao bancar a idéia que germinou no país, com algumas variantes, os médicos de Niterói protagonizam uma revolução silenciosa na saúde pública.
A cidade, hoje com 459 mil habitantes, colhe os frutos da investida. Ostenta o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU e as menores taxas de mortalidade infantil do Estado. Detém, também no Rio, os mais altos índices de qualidade de vida. O Programa Médico de Família (PMF) atende 86 mil niteroienses (pretende chegar a 120 mil em 2002) em áreas de risco epidemiológico – cortiços, favelas, loteamentos clandestinos, enclaves de pobreza onde ainda existe esgoto a céu aberto. São 286 funcionários, 11 mil consultas e 5 mil procedimentos a um custo mensal – bancado quase exclusivamente pelos cofres do município – inferior ao preço de muito apartamento com vista para o mar: R$ 1 milhão.
O trabalho desses profissionais já rendeu uma coleção de prêmios à cidade (Fundação Ford/Fundação Getúlio Vargas, Ministério da Saúde, entre outros), consultoria para 103 municípios brasileiros (sem contar as trocas de informação com países como Angola, Moçambique e Timor Leste) e é vivamente recomendado pela ONU e pelo Unicef. Prova de que o modelo vem dando certo é que a classe média niteroiense, gente que paga seguro de saúde privado, tem carro e casa, começa a reivindicar o mesmo tipo de atendimento reservado à população carente. Em bairros como Icaraí, Ponta da Areia, Barreto ou Vila Ipiranga, moradores se reúnem em assembléias para pedir à prefeitura que os inclua no programa. Criou-se uma situação sui generis, em que os ricos cobiçam o privilégio dos pobres.
“Estamos analisando os pedidos e vamos atendê-los”, promete a assistente social Maria Célia Vasconcelos. Ex-militante de esquerda e perseguida política pelo regime militar, Maria Célia hoje coordena os 21 módulos do programa que ajudou a fundar. São unidades fincadas em lugares muitas vezes inóspitos, dotadas de consultórios limpos, amplos e bem montados, onde se pratica a medicina em moldes cubanos. Em cada unidade, atuam duplas formadas por um médico e um auxiliar de enfermagem (90% são mulheres). Cada dupla atende, no máximo, 250 famílias, algo entre 1.000 e 1.200 pessoas. Quando o caso é mais complexo, o médico de família acompanha o doente a uma das seis policlínicas de Niterói ou a um dos hospitais da rede pública. Só o auxiliar de enfermagem precisa ser, obrigatoriamente, morador da favela onde o programa está instalado. Tem como incumbência aproximar mulheres e homens de branco, os doutores que sobem morro, de mulheres e homens que sempre entram pela porta dos fundos no sistema de saúde – quando entram.
O parentesco com o Programa de Medicina Familiar, introduzido em Cuba em 1984, por determinação de Fidel Castro, rende vantagens e um ônus. Entre as vantagens está a de que os niteroienses receberam, a partir de 1991, a consultoria de técnicos da ilha. Puderam experimentar um modelo já testado. Antes de disseminá-lo, Fidel apoiou-se no trabalho de 20 profissionais de saúde, que saíram pelo mundo a investigar sistemas de atendimento básico – entre eles, o general practitioner, da Inglaterra. O ônus reside no fato de que o governo Fernando Henrique não inclui Niterói entre as 3.200 experiências em saúde de família mantidas pelo Ministério da Saúde. “Temos divergências metodológicas”, informa a enfermeira Heloíza Machado, coordenadora do programa federal.
O modelo criado por Brasília exige que os municípios adotem equipes constituídas por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e de cinco a seis agentes comunitários de saúde moradores da área atendida. Niterói não aceitou a receita e ficou fora da divisão das verbas oficiais. Recebe ajuda financeira correspondente a um quinto do que gasta. “Não aceitamos o modelo porque as equipes, de acordo com as normas do ministério, atendem uma clientela três vezes maior, não há ênfase na formação do generalista e os médicos não contam com os mesmos mecanismos de supervisão”, diz Maria Célia. Até na cidade de São Paulo, onde a prefeita Marta Suplicy, do PT, começa a preencher vagas para médico de família, as normas do ministério são seguidas. Niterói insiste em nadar na contracorrente.
Depois de assistir a uma aloprada tentativa de introdução da medicina cubana em São Paulo, no governo Orestes Quércia (1987-1991), a antiga capital do Rio enveredou pelo mesmo caminho, levada pelas circunstâncias. A guinada ocorreu no verão de 1990, quando a cidade se viu às voltas com a ameaça de uma epidemia de dengue hemorrágica. Sanitaristas chegaram a prever perto de 2.500 mortes. “Não tínhamos idéia de como lidar com o problema”, recorda-se o prefeito Jorge Silveira, do PDT, atualmente no terceiro mandato. “Eu mandei reservar o Estádio Caio Martins para abrigar os doentes. Iria partir para uma coisa de doido.”
Foi nessa ocasião que Silveira procurou o apoio de técnicos de Cuba, país que havia enfrentado a dengue em outras oportunidades. Feito o contato, em nove dias formava-se a primeira comissão mista em Niterói. “Enquanto eu aprendia a combater o mosquito, fui me interessando pelo sistema de saúde da ilha. Achei que poderia importá-lo”, conta. Afastado o risco de epidemia, o prefeito foi a Cuba conhecer o que se faz por lá. Num encontro com Fidel, contou-lhe sua intenção. O comandante reagiu com reservas. “Ele me disse o seguinte: isso nunca deu certo fora daqui. Não pensem em copiar o modelo. Tratem de adaptá-lo”, rememora o prefeito.
A equipe cubana desembarcou no Rio em 1990, coordenada pelo médico Filiberto Perez. Falava em buscar os médicos residentes nas comunidades. Os niteroienses riam. “Eles não imaginavam que, aqui, não dá médico em favela”, recorda o dentista Luiz Hubner, ex-professor da Universidade Federal Fluminense e hoje um dos coordenadores do PMF. Várias vezes Perez ouviu a provocação: “Filiberto, desce de Sierra Maestra, isto aqui é Brasil!” As adaptações que, mais tarde, encantariam Fidel Castro foram basicamente duas: em vez do médico residente, encontrou-se nas zonas pobres o auxiliar de enfermagem residente. Em vez de os funcionários serem fiscalizados pela prefeitura, a comunidade assumiu a missão, organizando-se em associações de moradores.
Todas as manhãs, José Serafim, funcionário público aposentado, caminha com ar de detetive pelas calçadas do módulo da Favela do Preventório, uma ribanceira de barracos e casas sem reboco onde vivem 8 mil pessoas. Às 8 horas da manhã, Serafim, presidente da associação dos moradores, consulta o relógio e abre a agenda. “Se eu chegar cinco minutos atrasada, ele faz o apontamento”, revela Rosemary de Oliveira e Silva, formada há 21 anos, há cinco trabalhando como médica de família. Rosemary faz dupla com a auxiliar de enfermagem Rosângela Suvobida, viúva, mãe de três adolescentes, moradora do lugar. As duas pegam cedo no batente. “Eu deveria subir o morro todos os dias, mas acabo fazendo isso três vezes por semana”, lamenta a médica, como se estivesse em falta com as obrigações ao santo. A dupla, que já cadastrou moradia por moradia, envereda por ladeiras e becos para desentocar casos em que a atenção médica se faz necessária. Quando o doente se mostra arredio, Rosemary apela. “Se eu vejo que ele não vai fazer o tratamento, vou logo dizendo: ih, não tem jeito. Vai morrer. Fica aqui o atestado de óbito, se acontecer o pior, já está assinado.”
Com o tempo, a clientela acostumou-se às tiradas da doutora e passou a reagir com docilidade ao agendamento das consultas. Rosemary, que tem residência em pediatria e hematologia, há anos aperfeiçoa-se em treinamentos do programa para ser uma boa generalista. No dia-a-dia, tem de acompanhar dezenas de casos de diabetes, hipertensão, gravidez, osteoporose, asma, infecções as mais variadas. Na sala de consultas, exibe um painel feito à mão, por ela e pela auxiliar, em que se vêm casinhas recortadas de cartolina, debruadas com tinta colorida. Em cada uma delas, lê-se o nome do chefe da família. É o mapa do setor da favela que lhes compete. “Se o marido folgar, não perco tempo. Risco o nome dele e coloco o da mulher. Olha só como elas estão sustentando a casa”, aponta. A médica aceita ser sabatinada sobre o nome e o endereço dos clientes. Conhece-os de cor. Ali, os moradores construíram, em mutirão, 120 banheiros para gente que nunca havia experimentado a sensação de depositar as fezes em local apropriado.
No Preventório, o tráfico de drogas se insinua. Em outras favelas assistidas pelo programa, viceja. Nem isso é obstáculo para a atuação das duplas. “Não estamos aqui para negociar com o crime”, explica Maria Célia. “Nós queremos fazer nosso trabalho. E está claro para os bandidos que não somos polícia.” Tempos atrás, uma boca-de-fumo instalou-se às portas de um módulo no Morro do Cavalão, em Icaraí. Maria Célia mandou fechar a casa. Três dias depois, a associação dos moradores convocou-a para uma reunião. A certa altura, ouviu-se a voz de um deles no fundo da sala lotada: “Licença, minha tia. Eu sou o chefe do movimento, sou um sujeito muito procurado aqui no Rio”. Ao que Maria Célia respondeu: “Muito prazer, sou a coordenadora do Programa Médico de Família de Niterói”. Feitas as apresentações, num clima tenso, o traficante anunciou que, daquele dia em diante, a boca-de-fumo trocaria de endereço e o módulo poderia funcionar normalmente. Era um pedido do morro.
Quando o mês termina, quem libera o pagamento aos médicos e enfermeiros são os próprios presidentes das associações. Eles movimentam uma conta vinculada à Fundação Municipal de Saúde, criada em 1995 para agilizar o programa. O médico recebe R$ 3 mil e o auxiliar R$ 1 mil, por jornadas de trabalho de 40 horas semanais. “Vivemos quebrando resistências”, avalia Aguinaldo Zagne, atual secretário de Saúde do município. “Não é fácil um médico aceitar ser controlado por um favelado com poderes para demiti-lo a qualquer momento.” Secretário municipal de Saúde de São Paulo, o petista Eduardo Jorge elogia o programa, mas não quer copiá-lo. “É uma boa experiência local. Não pode ser transportada para uma grande cidade”, diz. Maria Célia contesta o argumento. “O que Niterói faz cabe em qualquer cidade com área metropolitana”, crava.
Em dez anos de funcionamento, o PMF orgulha-se de nunca ter perdido um funcionário para a violência. “Não tenho medo de Nova Brasília”, afirma Maria Beatriz Coutinho, de 38 anos. “Aqui existe muita gente boa.” Para atender Lídia Rosa, uma septuagenária hipertensa, a médica de traços bonitos e jeito de garota ultrapassa os postos de vigilância armada da favela dominada por Pão com Ovo, traficante preso no Rio. Nem os carteiros escalam aquelas encostas.
Para profissionais como Ilton e Maria Beatriz, o dia-a-dia vale mais que a residência em hospital. Algumas faculdades de medicina já perceberam a mudança – entre elas, a Federal Fluminense, de Niterói, a estadual de Londrina, no Paraná, e a particular de Marília, em São Paulo – e introduziram em seu currículo a cadeira de saúde de família, preparando generalistas. Até especialistas de renome, como o cardiologista Adib Jatene e o cirurgião Raul Cutait, endossam esse tipo de formação.
Coube a Niterói um papel singular em todo esse processo. Em dez anos, agregou ginga carioca à medicina caribenha, fez-se cidade-irmã de Havana e, hoje, a consultoria da ilha tornou-se dispensável. O programa anda sozinho. “Ficamos bravos quando dizem que tudo o que fizemos foi dar trabalho a médicos de Cuba. Jamais nos cobraram um centavo”, reclama Maria Célia, certa de que a população não abrirá mão do que conseguiu, independentemente dos prefeitos que vierem a ocupar o posto. O convívio com os cubanos se traduz em curiosos recuerdos. Vários dos módulos foram batizados com nomes dos heróis da ilha de Fidel – Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Abel Santamaría, entre outros. Nas escolas de Niterói, as crianças não aprendem sobre eles. Mal sabem das proezas do índio Araribóia, fundador da cidade, batizado no rito católico como Martim Afonso de Souza. Mas este é um problema para ser resolvido em sala de aula, não em consultório.
“Alguma queixa de dor, dona Francisca?” Os olhos embaçados pelo tempo – 93 anos – fitam o jovem de 25. Dor, não sente. A coceira, em compensação, não tem dia nem hora para atacar. Ilton tira o estetoscópio da maleta e continua proseando com a paciente, uma anciã negra, de cabelos alvos. Sentam-se no sofá de napa puída, em um barraco da Favela Nova Brasília, na Zona Norte de Niterói. Ele tira-lhe a pressão arterial. Apalpa-lhe o corpo mirrado. Investiga tudo, da cabeça aos pés. Não se morre de coceira, mas, que incomoda, ninguém duvida. O médico decide intrometer-se na rotina do barraco. “Dona Francisca, não dá para continuar picando pano dentro de casa. Tem de ser no quintal, a céu aberto, longe do sofá e das camas. A senhora está com sarna.” A paciente leva um susto. Quase centenária, porém lúcida, é ela quem mantém a família que lhe resta – uma filha de 70 anos e dois bisnetos. Toda semana, Francisca Ribeiro vai até uma confecção das redondezas catar restos de tecido. Muitos chegam imundos a suas mãos. Em casa, ela transforma fardos em retalhos, para revendê-los a um estaleiro fluminense que os utiliza em serviços de limpeza. Fatura meio salário mínimo por mês. E é disso que sobrevive.
O rapaz de jaleco branco conhece bem a história. Se viesse a esquecer algum detalhe, consultaria fichas que ele preenche de próprio punho para integrar o acervo de informações de saúde sobre os 8 mil moradores de uma das mais violentas favelas de Niterói. Quando desce as ladeiras de Nova Brasília, tem certeza do tratamento a prescrever: banhos diários de benzoato de benzila, composto químico para combater a escabiose. Voltará ao barraco no mesmo dia levando o medicamento para aliviar a coceira da catadora de panos. Nascido em Trajano de Morais, no interior do Rio de Janeiro, Ilton Magalhães Jr. transformou-se num profissional fora dos padrões preconizados pela maioria das faculdades de medicina do país. É um médico de família. No métier, já se sabe o que isso significa. Trata-se de um clínico generalista, capaz de atender de pacientes com sarna a portadores de HIV, sem jamais perder de vista a moldura social que contorna as questões de saúde. “Se eu não tivesse feito essa opção de trabalho, já teria abandonado a medicina”, admite o clínico, recém-saído da residência.
Não é de hoje que Niterói aposta em profissionais com esse perfil. Em torno do clínico generalista, uma figura em extinção nos hospitais – cada vez mais nas mãos de especialistas –, a prefeitura do município compôs um programa pioneiro que, com mudanças de estilo e enfoque, vem sendo reproduzido em diversos pontos do país. Nele, aprende-se que 80% dos problemas de saúde da população podem ser resolvidos com um atendimento primário eficiente, estável, gratuito, voltado acima de tudo para a qualidade de vida, e não só para a cura da doença. Ao bancar a idéia que germinou no país, com algumas variantes, os médicos de Niterói protagonizam uma revolução silenciosa na saúde pública.
A cidade, hoje com 459 mil habitantes, colhe os frutos da investida. Ostenta o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU e as menores taxas de mortalidade infantil do Estado. Detém, também no Rio, os mais altos índices de qualidade de vida. O Programa Médico de Família (PMF) atende 86 mil niteroienses (pretende chegar a 120 mil em 2002) em áreas de risco epidemiológico – cortiços, favelas, loteamentos clandestinos, enclaves de pobreza onde ainda existe esgoto a céu aberto. São 286 funcionários, 11 mil consultas e 5 mil procedimentos a um custo mensal – bancado quase exclusivamente pelos cofres do município – inferior ao preço de muito apartamento com vista para o mar: R$ 1 milhão.
O trabalho desses profissionais já rendeu uma coleção de prêmios à cidade (Fundação Ford/Fundação Getúlio Vargas, Ministério da Saúde, entre outros), consultoria para 103 municípios brasileiros (sem contar as trocas de informação com países como Angola, Moçambique e Timor Leste) e é vivamente recomendado pela ONU e pelo Unicef. Prova de que o modelo vem dando certo é que a classe média niteroiense, gente que paga seguro de saúde privado, tem carro e casa, começa a reivindicar o mesmo tipo de atendimento reservado à população carente. Em bairros como Icaraí, Ponta da Areia, Barreto ou Vila Ipiranga, moradores se reúnem em assembléias para pedir à prefeitura que os inclua no programa. Criou-se uma situação sui generis, em que os ricos cobiçam o privilégio dos pobres.
“Estamos analisando os pedidos e vamos atendê-los”, promete a assistente social Maria Célia Vasconcelos. Ex-militante de esquerda e perseguida política pelo regime militar, Maria Célia hoje coordena os 21 módulos do programa que ajudou a fundar. São unidades fincadas em lugares muitas vezes inóspitos, dotadas de consultórios limpos, amplos e bem montados, onde se pratica a medicina em moldes cubanos. Em cada unidade, atuam duplas formadas por um médico e um auxiliar de enfermagem (90% são mulheres). Cada dupla atende, no máximo, 250 famílias, algo entre 1.000 e 1.200 pessoas. Quando o caso é mais complexo, o médico de família acompanha o doente a uma das seis policlínicas de Niterói ou a um dos hospitais da rede pública. Só o auxiliar de enfermagem precisa ser, obrigatoriamente, morador da favela onde o programa está instalado. Tem como incumbência aproximar mulheres e homens de branco, os doutores que sobem morro, de mulheres e homens que sempre entram pela porta dos fundos no sistema de saúde – quando entram.
O parentesco com o Programa de Medicina Familiar, introduzido em Cuba em 1984, por determinação de Fidel Castro, rende vantagens e um ônus. Entre as vantagens está a de que os niteroienses receberam, a partir de 1991, a consultoria de técnicos da ilha. Puderam experimentar um modelo já testado. Antes de disseminá-lo, Fidel apoiou-se no trabalho de 20 profissionais de saúde, que saíram pelo mundo a investigar sistemas de atendimento básico – entre eles, o general practitioner, da Inglaterra. O ônus reside no fato de que o governo Fernando Henrique não inclui Niterói entre as 3.200 experiências em saúde de família mantidas pelo Ministério da Saúde. “Temos divergências metodológicas”, informa a enfermeira Heloíza Machado, coordenadora do programa federal.
O modelo criado por Brasília exige que os municípios adotem equipes constituídas por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e de cinco a seis agentes comunitários de saúde moradores da área atendida. Niterói não aceitou a receita e ficou fora da divisão das verbas oficiais. Recebe ajuda financeira correspondente a um quinto do que gasta. “Não aceitamos o modelo porque as equipes, de acordo com as normas do ministério, atendem uma clientela três vezes maior, não há ênfase na formação do generalista e os médicos não contam com os mesmos mecanismos de supervisão”, diz Maria Célia. Até na cidade de São Paulo, onde a prefeita Marta Suplicy, do PT, começa a preencher vagas para médico de família, as normas do ministério são seguidas. Niterói insiste em nadar na contracorrente.
Depois de assistir a uma aloprada tentativa de introdução da medicina cubana em São Paulo, no governo Orestes Quércia (1987-1991), a antiga capital do Rio enveredou pelo mesmo caminho, levada pelas circunstâncias. A guinada ocorreu no verão de 1990, quando a cidade se viu às voltas com a ameaça de uma epidemia de dengue hemorrágica. Sanitaristas chegaram a prever perto de 2.500 mortes. “Não tínhamos idéia de como lidar com o problema”, recorda-se o prefeito Jorge Silveira, do PDT, atualmente no terceiro mandato. “Eu mandei reservar o Estádio Caio Martins para abrigar os doentes. Iria partir para uma coisa de doido.”
Foi nessa ocasião que Silveira procurou o apoio de técnicos de Cuba, país que havia enfrentado a dengue em outras oportunidades. Feito o contato, em nove dias formava-se a primeira comissão mista em Niterói. “Enquanto eu aprendia a combater o mosquito, fui me interessando pelo sistema de saúde da ilha. Achei que poderia importá-lo”, conta. Afastado o risco de epidemia, o prefeito foi a Cuba conhecer o que se faz por lá. Num encontro com Fidel, contou-lhe sua intenção. O comandante reagiu com reservas. “Ele me disse o seguinte: isso nunca deu certo fora daqui. Não pensem em copiar o modelo. Tratem de adaptá-lo”, rememora o prefeito.
A equipe cubana desembarcou no Rio em 1990, coordenada pelo médico Filiberto Perez. Falava em buscar os médicos residentes nas comunidades. Os niteroienses riam. “Eles não imaginavam que, aqui, não dá médico em favela”, recorda o dentista Luiz Hubner, ex-professor da Universidade Federal Fluminense e hoje um dos coordenadores do PMF. Várias vezes Perez ouviu a provocação: “Filiberto, desce de Sierra Maestra, isto aqui é Brasil!” As adaptações que, mais tarde, encantariam Fidel Castro foram basicamente duas: em vez do médico residente, encontrou-se nas zonas pobres o auxiliar de enfermagem residente. Em vez de os funcionários serem fiscalizados pela prefeitura, a comunidade assumiu a missão, organizando-se em associações de moradores.
Todas as manhãs, José Serafim, funcionário público aposentado, caminha com ar de detetive pelas calçadas do módulo da Favela do Preventório, uma ribanceira de barracos e casas sem reboco onde vivem 8 mil pessoas. Às 8 horas da manhã, Serafim, presidente da associação dos moradores, consulta o relógio e abre a agenda. “Se eu chegar cinco minutos atrasada, ele faz o apontamento”, revela Rosemary de Oliveira e Silva, formada há 21 anos, há cinco trabalhando como médica de família. Rosemary faz dupla com a auxiliar de enfermagem Rosângela Suvobida, viúva, mãe de três adolescentes, moradora do lugar. As duas pegam cedo no batente. “Eu deveria subir o morro todos os dias, mas acabo fazendo isso três vezes por semana”, lamenta a médica, como se estivesse em falta com as obrigações ao santo. A dupla, que já cadastrou moradia por moradia, envereda por ladeiras e becos para desentocar casos em que a atenção médica se faz necessária. Quando o doente se mostra arredio, Rosemary apela. “Se eu vejo que ele não vai fazer o tratamento, vou logo dizendo: ih, não tem jeito. Vai morrer. Fica aqui o atestado de óbito, se acontecer o pior, já está assinado.”
Com o tempo, a clientela acostumou-se às tiradas da doutora e passou a reagir com docilidade ao agendamento das consultas. Rosemary, que tem residência em pediatria e hematologia, há anos aperfeiçoa-se em treinamentos do programa para ser uma boa generalista. No dia-a-dia, tem de acompanhar dezenas de casos de diabetes, hipertensão, gravidez, osteoporose, asma, infecções as mais variadas. Na sala de consultas, exibe um painel feito à mão, por ela e pela auxiliar, em que se vêm casinhas recortadas de cartolina, debruadas com tinta colorida. Em cada uma delas, lê-se o nome do chefe da família. É o mapa do setor da favela que lhes compete. “Se o marido folgar, não perco tempo. Risco o nome dele e coloco o da mulher. Olha só como elas estão sustentando a casa”, aponta. A médica aceita ser sabatinada sobre o nome e o endereço dos clientes. Conhece-os de cor. Ali, os moradores construíram, em mutirão, 120 banheiros para gente que nunca havia experimentado a sensação de depositar as fezes em local apropriado.
No Preventório, o tráfico de drogas se insinua. Em outras favelas assistidas pelo programa, viceja. Nem isso é obstáculo para a atuação das duplas. “Não estamos aqui para negociar com o crime”, explica Maria Célia. “Nós queremos fazer nosso trabalho. E está claro para os bandidos que não somos polícia.” Tempos atrás, uma boca-de-fumo instalou-se às portas de um módulo no Morro do Cavalão, em Icaraí. Maria Célia mandou fechar a casa. Três dias depois, a associação dos moradores convocou-a para uma reunião. A certa altura, ouviu-se a voz de um deles no fundo da sala lotada: “Licença, minha tia. Eu sou o chefe do movimento, sou um sujeito muito procurado aqui no Rio”. Ao que Maria Célia respondeu: “Muito prazer, sou a coordenadora do Programa Médico de Família de Niterói”. Feitas as apresentações, num clima tenso, o traficante anunciou que, daquele dia em diante, a boca-de-fumo trocaria de endereço e o módulo poderia funcionar normalmente. Era um pedido do morro.
Quando o mês termina, quem libera o pagamento aos médicos e enfermeiros são os próprios presidentes das associações. Eles movimentam uma conta vinculada à Fundação Municipal de Saúde, criada em 1995 para agilizar o programa. O médico recebe R$ 3 mil e o auxiliar R$ 1 mil, por jornadas de trabalho de 40 horas semanais. “Vivemos quebrando resistências”, avalia Aguinaldo Zagne, atual secretário de Saúde do município. “Não é fácil um médico aceitar ser controlado por um favelado com poderes para demiti-lo a qualquer momento.” Secretário municipal de Saúde de São Paulo, o petista Eduardo Jorge elogia o programa, mas não quer copiá-lo. “É uma boa experiência local. Não pode ser transportada para uma grande cidade”, diz. Maria Célia contesta o argumento. “O que Niterói faz cabe em qualquer cidade com área metropolitana”, crava.
Em dez anos de funcionamento, o PMF orgulha-se de nunca ter perdido um funcionário para a violência. “Não tenho medo de Nova Brasília”, afirma Maria Beatriz Coutinho, de 38 anos. “Aqui existe muita gente boa.” Para atender Lídia Rosa, uma septuagenária hipertensa, a médica de traços bonitos e jeito de garota ultrapassa os postos de vigilância armada da favela dominada por Pão com Ovo, traficante preso no Rio. Nem os carteiros escalam aquelas encostas.
Para profissionais como Ilton e Maria Beatriz, o dia-a-dia vale mais que a residência em hospital. Algumas faculdades de medicina já perceberam a mudança – entre elas, a Federal Fluminense, de Niterói, a estadual de Londrina, no Paraná, e a particular de Marília, em São Paulo – e introduziram em seu currículo a cadeira de saúde de família, preparando generalistas. Até especialistas de renome, como o cardiologista Adib Jatene e o cirurgião Raul Cutait, endossam esse tipo de formação.
Coube a Niterói um papel singular em todo esse processo. Em dez anos, agregou ginga carioca à medicina caribenha, fez-se cidade-irmã de Havana e, hoje, a consultoria da ilha tornou-se dispensável. O programa anda sozinho. “Ficamos bravos quando dizem que tudo o que fizemos foi dar trabalho a médicos de Cuba. Jamais nos cobraram um centavo”, reclama Maria Célia, certa de que a população não abrirá mão do que conseguiu, independentemente dos prefeitos que vierem a ocupar o posto. O convívio com os cubanos se traduz em curiosos recuerdos. Vários dos módulos foram batizados com nomes dos heróis da ilha de Fidel – Che Guevara, Camilo Cienfuegos, Abel Santamaría, entre outros. Nas escolas de Niterói, as crianças não aprendem sobre eles. Mal sabem das proezas do índio Araribóia, fundador da cidade, batizado no rito católico como Martim Afonso de Souza. Mas este é um problema para ser resolvido em sala de aula, não em consultório.