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Três setores precisam se articular para uma nova ordem social

Por redeGIFE   19 de fevereiro de 2002
O Brasil ainda dá os primeiros passos na construção de consensos entre os atores sociais. Esta é a opinião do economista Ladislau Dowbor, professor da PUC/SP e ex-consultor do Secretário Geral da ONU no início da década de 80.

Em entrevista ao redeGIFE, Dowbor fala sobre a importância de ações coordenadas entre os três setores para o desenvolvimento social do país, tema principal do II Congresso Nacional sobre Investimento Social Privado - A articulação entre o público e o privado na construção de uma nova ordem social.

redeGIFE - O senhor acha que ainda faz sentido discutir quem é responsável pelo desenvolvimento social, se o Estado, o setor privado ou a sociedade civil?

Ladislau Dowbor - Atividades como educação, cultura, saúde, esporte e segurança funcionam pessimamente quando administradas com fins lucrativos. Resulta em uma educação elitista, saúde curativa hospitalar, que é a mais cara e ineficiente, e assim por diante. Mas as tradicionais pirâmides burocráticas do Estado também são deficientes, pois o social consiste em atividades capilares, que precisam atingir a cada indivíduo no país todo e necessitam de gestão descentralizada e flexível. A minha visão é de que a administração das políticas sociais deve ser dominantemente comunitária, com forte participação das organizações da sociedade civil, enquanto o Estado deve ter presença reguladora e as empresas um papel subsidiário de apoio através de parcerias.

redeGIFE - Considerando o poder econômico das empresas, elas vem cumprindo satisfatoriamente seu papel de transformação social? Até que ponto este é um papel do setor privado? Dowbor - Uma pesquisa nacional nos Estados Unidos sobre se as empresas podem se limitar a fazer lucro obteve apenas 4% de respostas positivas por parte da população americana. A responsabilidade social e ambiental da empresa é hoje uma questão de senso comum. As grandes corporações, em particular, que influenciam diretamente a política - inclusive através de financiamentos pesados de campanhas eleitorais -, não podem restringir a sua responsabilidade apenas à atividade econômica. Particular importância têm as grandes empresas que lidam com recursos de terceiros, como os bancos, as que formam opinião, como a mídia, as que têm forte impacto ambiental, como as mineradoras, ou as que entram no jogo da corrupção. Mas qualquer empresa pode repensar o seu papel visando um impacto social e ambiental mais positivo.

redeGIFE - Como e quando vamos chegar à articulação dos objetivos econômicos, sociais e ambientais? Dowbor - As Nações Unidas definem claramente o nosso objetivo: um desenvolvimento economicamente viável, socialmente justo e sustentável do ponto de vista ambiental. Isto não se atinge com as empresas só pensando em dinheiro, o Estado arcando com as conseqüências sociais e o terceiro setor batalhando a defesa do meio ambiente. Os três objetivos são responsabilidade integral destes três grandes grupos de organização sócio-política.

redeGIFE - Como o senhor observa as tentativas de interlocução entre as organizações sem fins lucrativos e o Estado? Dowbor - Um ponto importante é que a gestão social exige políticas descentralizadas. É no nível do município, da comunidade, que a área pública e as organizações da sociedade civil podem efetivamente se aproximar. No Brasil, os municípios têm acesso a 17% dos recursos públicos, quando na Suécia a cifra correspondente é de 72%. Aqui, ainda estamos construindo o contexto jurídico e institucional que permita uma gestão social eficiente e a construção sistemática de parcerias. É importante lembrar que a lei do terceiro setor, que permite que haja financiamento do setor público às organizações da sociedade civil, apenas recentemente foi aprovada. Estamos dando os primeiros passos.

redeGIFE - Qual sua avaliação sobre as políticas sociais desenvolvidas atualmente pelo Estado no Brasil? Dowbor - O Brasil gasta muito dinheiro na área social: cerca de um quarto do PIB se somarmos os serviços públicos e privados. Mas 80% dos recursos em saúde buscam a saúde curativa hospitalar e os gastos de educação vão para os privilegiados que entram nas grandes universidades estaduais ou federais. O resultado é muito dinheiro e pouco resultado. O Banco Mundial chegou a mandar uma missão técnica ao Brasil para entender como se consegue resultados sociais tão ruins gastando tantos recursos.

redeGIFE - Com a tendência de organizações do setor privado atuarem como protagonistas da ação social, o senhor acredita que pode haver mudanças na forma como o Estado formula suas políticas sociais? Dowbor - É importante definir claramente o que queremos dizer com "setor privado". Os objetivos empresariais - veja-se o comportamento do cartel de algumas empresas - podem ser muito distantes dos objetivos sociais. As organizações da sociedade civil, de forma geral, não buscam o lucro, e sim os resultados práticos na área social. Cabe às empresas se articularem com estes objetivos. Isto não significa apenas apoiar ações escolares, por exemplo. O empresariado poderia ajudar imensamente apoiando uma reforma tributária que permita descentralizar os recursos públicos para o nível municipal, visando a abrir espaço para o desenvolvimento local integrado.

redeGIFE - Como professor e pesquisador, o senhor avalia que o interesse da Academia pelo terceiro setor está crescendo? Dowbor - Há hoje cerca de 20 cursos superiores de gestão de instituições do terceiro setor. As grandes universidades, como a USP, a PUC/SP, a FGV/SP, têm núcleos de pesquisa sobre a área. Mas o caminho ainda é muito longo, pois na visão geral das pessoas, o mundo se divide em Estado e empresas. As organizações da sociedade civil ainda estão batalhando o seu lugar ao Sol, e grande parte do mundo acadêmico ainda não entendeu a força das novas dinâmicas.

redeGIFE - Como uma aliança entre Academia e terceiro setor pode fortalecer as organizações da sociedade civil? Através de pesquisas e cursos ou o senhor vislumbra possibilidades mais amplas? Quais? Dowbor - É importante entender que o desenvolvimento social constitui por um lado uma série de áreas de atividade, como a saúde, a educação, a cultura, a segurança, o esporte, o lazer e a habitação. Mas é também uma forma de fazer indústria, agricultura, organização do transporte urbano e assim por diante. Em outros termos, ele é uma área de atividades. Assim, o desenvolvimento social não pode se restringir aos cursos de Serviço Social, de Educação e semelhantes. A Politécnica, o Direito, a Economia e outros devem pensar e pesquisar as suas áreas do ponto de vista social e ambiental e estudar as formas participativas de atuação que cada uma pode dinamizar. Uma medida prática seria cada universidade adotar um conselho consultivo social, onde estivessem representadas a administração municipal, setores mais significativos da sociedade civil, empresas e sindicatos. A Academia poderia assim, gradualmente, construir a sua capacidade de trazer respostas integradas aos principais desafios como a pobreza, a segurança, a construção de ambientes urbanos mais saudáveis e assim por diante. De forma geral, temos no Brasil uma cultura em que cada ator social busca identificar quem é o culpado pelo estado das coisas. Uma vez que se identificou o culpado, diferente segundo as posições políticas - culpar o Estado, por exemplo, é uma grande e facílima solução - podemos dormir em paz. A realidade é que a culpa - e a responsabilidade - é de todos nós. E temos de aprender a conversar, a elaborar consensos. Quando há um problema, não podemos imediatamente sair em busca da vidraça onde se possa jogar a pedra. Devemos buscar reunir os atores sociais que podem construir uma resposta. A cultura da construção de consensos está dando os primeiros passos no Brasil.

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