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Portas abertas às Nações Unidas

Por Paulo Sérgio Pinheiro e Marcos Gama*   2 de maio de 2002
Em 1978, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas tomou a decisão inédita de nomear um relator especial para monitorar os abusos perpetrados pelo regime militar chileno, abrindo espaço para a consideração, em procedimento ostensivo, de situações de violação grave e sistemática dos direitos humanos em qualquer país. Da mesma forma, a CDH designou pela primeira vez, em 1982, um relator temático, com a finalidade de examinar a questão das execuções sumárias e arbitrárias. Estas foram as primeiras etapas na construção de um sistema de relatorias destinado a monitorar situações e temas de direitos humanos de interesse da comunidade internacional.

Os estados-membros da ONU têm a obrigação de cooperar de boa-fé com os relatores especiais e demais mecanismos internacionais de supervisão dos direitos humanos. Lamentavelmente, nem todos os governos se dispõem a interagir de forma aberta e transparente com órgãos internacionais como a CDH.

O Brasil tem aprofundado a cooperação e o diálogo com os mecanismos temáticos da Comissão, de forma consistente com a política nacional de direitos humanos. Em 19 de dezembro passado, o presidente Fernando Henrique Cardoso tomou novo passo nessa direção, ao formular um convite aberto a todos os relatores e mecanismos internacionais de supervisão dos direitos humanos, para que visitem o Brasil sempre que assim o desejarem. O Brasil tornou-se o primeiro país na América do Sul, e o 12 no mundo, a estender esse tipo de convite aos relatores da ONU, o que torna supérflua a costumeira autorização para entrada da missão no país. São muito poucos os países em desenvolvimento a demonstrarem tamanha abertura no campo dos direitos humanos, e o fato de o Brasil ainda apresentar um grande passivo nesta área - apesar dos progressos alcançados nos últimos anos - só reforça suas credenciais.

Entre 1993 e 2002, recebemos a visita de relatores especiais da CDH sobre os temas da prostituição e pornografia infantis, da violência contra a mulher, do racismo e da discriminação racial, dos direitos humanos e resíduos tóxicos, da tortura e do direito à alimentação, e devemos acolher no final do ano a relatora sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias. Os relatores apresentam informes à CDH assinalando os pontos positivos e aspectos preocupantes identificados durante a visita, e formulam recomendações para melhorar a situação geral dos direitos humanos no país em questão.

O governo brasileiro tem recebido essas observações com naturalidade, e procurado traduzir em medidas concretas a grande maioria das recomendações. À guisa de exemplo, foi a partir do diálogo estabelecido em 2000 com o relator especial da CDH sobre a tortura que o governo federal lançou, no ano passado, uma inédita campanha nacional contra aquela prática. Da mesma forma, a missão do relator da CDH sobre o racismo, em 1995, ajudou a derrubar o mito da democracia racial no país, abrindo o caminho para a adoção, em 2001, de programas de ação afirmativa em favor de afro-descendentes e outros grupos discriminados, no espírito dos compromissos assumidos na Conferência Mundial contra o Racismo em Durban, África do Sul.

No âmbito interno, o desenvolvimento de programas e ações no campo dos direitos humanos é hoje impensável sem a parceria de entidades da sociedade civil. O envolvimento direto das ONGs no processo de revisão do Programa Nacional de Direitos Humanos constitui exemplo eloqüente dessa cooperação. E, no plano internacional, o Brasil nada tem a perder ao jogar a carta da transparência em suas relações com organismos internacionais dedicados à proteção dos direitos humanos. A CDH não dispõe de poder coercitivo para impor sanções econômicas e comerciais. Isto equivaleria, ademais, a impor sacrifícios adicionais a países que já são prejudicados pelo protecionismo do Norte e os efeitos de uma globalização assimétrica, não-ética e não-solidária.

Embora o diálogo com os relatores da CDH e demais mecanismos de supervisão dos direitos humanos exija um esforço constante de adaptação, ele é hoje uma marca distintiva da projeção do Brasil nos foros políticos multilaterais. A alta comissária da ONU para os direitos humanos Mary Robinson reconheceu essa característica, ao afirmar que o Brasil já deu o primeiro passo para a solução dos problemas, ao admitir sua existência. Resta intensificar as ações para erradicar as violações de direitos humanos que ainda fazem parte do cotidiano de muitos brasileiros.

*Paulo Sérgio Pinheiro é secretário de Estado dos Direitos Humanos e relator especial da ONU para o Myanmar (ex-Birmânia); Marcos Pinta Gama é assessor especial da Secretaria de Estados dos Direitos Humanos.

Artigo publicado no site O Globo Online, dia 15 de abril, www.oglobo.com.br.

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