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Guerra sem trégua

Por Revista ÉPOCA - Cláudio Henrique e Nelito Fernandes   7 de maio de 2002
Sem sutilezas nem glamourização, O Clone torna-se um marco histórico na luta contra as drogas

Pouco antes de morrer, em 1996, o escritor americano Timothy Leary, profeta da contracultura nos anos 60, publicou um texto em que insistia na defesa de uma relação íntima entre experimentação alucinógena e criação artística. "Não prego que todos devam usar drogas", registrou. "Apenas os xamãs modernos, os artistas e os intelectuais, as pessoas criativas em geral é que normalmente se beneficiam." Hoje, quando todos sabem os males que as drogas provocam, o texto de Leary é peça de arqueologia cultural, semelhante aos devaneios do pai da psicanálise, Sigmund Freud, com a cocaína. Calejada por ressacas, depressões e mesmo a perda de colegas queridos, boa parte dos artistas que três décadas atrás embarcavam sem passaporte para alucinantes viagens cerebrais hoje prefere usar holofotes e microfones, típicos da profissão, para condenar as drogas. O ator americano Robin Wiliams e o cantor inglês Elton John já o fizeram. No Brasil, o ator Felipe Camargo e o DJ Thunderbird também. Nunca se viu, contudo, cenas iguais às exibidas de segunda a sábado, no horário nobre da Rede Globo, em O Clone.

Num país onde o consumo de maconha é tão grande que deixa seu aroma característico em locais de concentração de jovens, inspira bandas de rock e anima um debate favorável a mudanças na legislação, O Clone não usa mensagens sutis. São cenas impactantes, dramáticas, cujo apogeu se viu na semana passada, quando a personagem Mel, vivida pela atriz Débora Falabella - que ficou doente e foi substituída pela irmã, Cíntia -, teve uma crise de abstinência ao ser trancafiada pela família no próprio quarto. Dali só saiu aos berros, carregada à força por enfermeiros de uma clínica para dependentes químicos. Enquanto a menina é jogada na ambulância, o pai, Lucas (Murilo Benício), chora ao relembrar de imagens da filha ainda criança. A mãe, Maysa (Daniela Escobar), aos prantos, leva as mãos ao ventre. A trama tem ainda Lobato (Osmar Prado), executivo que luta contra a dependência e dá contundentes depoimentos sobre o flagelo.

O elenco reúne artistas que já tiveram problemas com alucinógenos. Do próprio Osmar Prado - que admite ter experimentado maconha e procurado terapia para deixar o álcool - a Cissa Guimarães e Vera Fischer - que viveu um drama público em sua luta contra a dependência, da qual saiu vitoriosa. Todos vestindo a mesma camisa, e diante de milhões de telespectadores. O Clone tem, em média, 45 pontos no Ibope. Na semana passada, atingiu o pico de 65 pontos, equivalentes a 3 milhões de domicílios, apenas na Grande São Paulo. Boa parte da audiência é assegurada por um recurso poderoso. De tempos em tempos, os diálogos entre personagens de ficção são cortados por imagens de drogados de verdade procurando deixar o fundo do poço da dependência. São momentos fortes, de olhos, mãos e bocas que definem personalidades estraçalhadas.

Firmando-se, mais uma vez, como a melhor novelista brasileira em atividade, a autora Glória Perez conta que a idéia de abordar o tema surgiu porque via as campanhas contra as drogas e sempre se perguntava: o que exatamente passa na cabeça de um viciado? "Gosto de abrir espaço para pessoas que não têm voz", diz Glória. Em sua preocupação, a novela tem o mérito de quebrar um tabu. Em 1973, em pleno regime militar, tentou-se levar uma campanha do mesmo gênero nos capítulos de Cavalo de Aço, de Walter Negrão. Assim que leram na sinopse uma cena em que aparecia um papelote de cocaína, os censores decidiram suspender qualquer menção às drogas.

Três décadas depois, O Clone é sinal de um novo tempo. No Brasil de hoje, fala-se de droga com preocupação - mas de forma aberta e amadurecida. Em novembro do ano passado, ÉPOCA fez uma reportagem de capa na qual personalidades da televisão, da música e mesmo profissionais de sucesso assumiam o uso de maconha, contribuindo para abrir uma discussão necessária sobre o assunto. No país de Cavalo de Aço, aquilo que era proibido tornava-se automaticamente charmoso. Por coincidência, vigoravam entre a juventude variações da utopia de autoconhecimento e libertação espiritual sintetizada por Aldous Huxley em As Portas da Percepção, que inspirou a geração beatnik.

Trinta anos atrás a droga tinha seu charme e seu uso chiquíssimo - mais indispensável que terno da Daslu em armário de Mauricinho. No Rio de Janeiro, quem sabia das coisas freqüentava o ponto da praia onde o consumo de maconha era aparentemente tolerado: as Dunas do Barato, ou Dunas da Gal - assim mesmo, numa referência à cantora, assídua naquelas ondas, com seus cabelos e seu sotaque baiano. "Freqüentei o Píer de Ipanema e, com 14 anos, fumava maconha e tomava lisérgicos para ver o pôr-do-sol", conta a atriz Cissa Guimarães, a Clarice de O Clone. "Usava cocaína nos ensaios das peças porque achava que me deixava mais inteligente. Mas no dia seguinte ninguém se lembrava de nada." Era um tempo em que os artistas usavam drogas, e não omitiam - apesar do ambiente repressivo. Numa excursão do grupo Os Doces Bárbaros, que seria interrompida com a prisão de Gilberto Gil em Florianópolis, por consumo de maconha, em 1976, um repórter perguntou a Caetano Veloso: "O que você acha do LSD?" A resposta do cantor: "É uma bela droga".

Durante certo tempo, vigorou até uma classificação, que trazia embutida uma preferência ideológica. Haveria drogas libertárias, capazes de ampliar o autoconhecimento - categoria em que se classificavam a maconha e o LSD, por exemplo. Também haveria drogas ligadas ao desempenho, à competição e ao mundo profissional - como a cocaína. Essa diferença, hoje, perdeu relevância, ensina O Clone. As drogas são julgadas por aquilo que são. O que se discute é o prazer que podem proporcionar subtraído pelo risco à saúde que representam. O quesito básico não é um novo estado mental de liberdade, mas a dependência que escraviza. O debate mudou tanto que, em 2002, o que se discute é como deixar a polícia longe do jovem usuário, aquele que de vez em quando é encontrado com um baseado na mochila - e pode ser submetido a uma série de vexames, chantagens e ameaças capazes de traumatizar uma pessoa por toda a vida.

Quem tinha 20 anos na década de 60 lembra de um mundo diferente. Pessoas que não haviam fumado maconha tinham vergonha disso. As viagens de ácido lisérgico, que já faziam vítimas permanentes, eram descritas como obras-primas. Para o escritor Ruy Castro - um ex-usuário de cocaína -, há motivos para os artistas serem associados à droga. "Todos esperam que um artista se vista diferente, fale diferente, tenha um comportamento sexual diferente e se drogue", diz. "A novela O Clone pode ser o indício de uma mudança de consciência da classe artística brasileira", afirma.

O ator Felipe Camargo - outro ex-dependente - diz que só no início a droga dá sensação de potencializar a criação. "Depois se torna uma chatice e embota a criatividade. A lucidez deixa você muito mais criativo." Camargo, de 41 anos, não tem dúvida em afirmar que o consumo de drogas diminuiu entre seus colegas de profissão. "As pessoas que mergulham fundo na experiência percebem que a droga não abre os horizontes", diz o ator. Ele conta que se iniciou no vício com o álcool e procurou pela primeira vez ajuda médica quando já se "achava confuso". "Sofri muito, senti muita dor", lembra. "Via uma luz no túnel, mas essa luz nunca chegava, parecia que eu voltava atrás. É muito difícil abandonar o vício." Percebeu que a situação era grave no dia em que recusou um papel para o filme O Que É Isso, Companheiro?. Hoje, recuperado, freqüenta as reuniões dos Narcóticos Anônimos. "Estou há cinco anos, sete meses e 16 dias sem beber uma gota de álcool ou cheirar cocaína", disse a ÉPOCA, em 16 de abril.

O apresentador de TV Thunderbird, outro recuperado, diz que, sem as drogas, as dificuldades da vida continuam. "Mas é muito mais fácil lidar com nossos problemas quando estamos sóbrios", diz. No auge do consumo de cocaína, ele chegou a deixar diretores da Rede Globo esperando nos estúdios enquanto cheirava sem parar num quarto de hotel. "Pagava passagem de avião para um traficante ir de São Paulo ao Rio", afirma. Seu programa na emissora, TV Zona, ficou apenas dois meses no ar. "As drogas prejudicaram meu trabalho na Globo. Gravava louco. Se estivesse careta, seria diferente. "As drogas também conturbaram a vida do grande ator Paulo César Pereio. Há quatro anos, ele se isolou numa pequena cidade do interior de Goiás tentando fugir da dependência. "Era só sair de casa que jogavam drogas na minha mão", conta. "No início da carreira, dava uns tapinhas para não passar por careta." Com o tempo, ficou escravo. "As drogas já não me divertiam. Tinha só compulsão para usá-las", lembra. Pereio nega que seu casamento com Cissa Guimarães tenha chegado ao fim por causa das drogas. "Acho que durou muito (12 anos) justamente por causa delas. A droga enfraquece tanto que você não consegue se escorar sozinho."

Cissa tem lembranças diferentes. "A cocaína faz você perder seus sentimentos e, depois, o respeito pela outra pessoa. Quando percebi isso me afastei de Pereio." Hoje, Cissa só bebe - em festas e jantares. Já Pereio ainda se permite avançar no antigo hábito. "Consigo me administrar bem. Posso dar um tapa num baseado de vez em quando, mas não mexo mais com cocaína", diz. Os dois também divergem sobre a campanha criada por Glória Perez. Cissa é só elogios. Pereio não gosta. "Esse tipo de campanha não funciona", acredita. "Elas estabelecem uma atração ainda maior pela droga. É a volúpia da transgressão. Foi assim que me viciei em cigarro. Porque meu pai proibia."

Os especialistas têm, em sua maioria, recebido com aplausos o discurso antidrogas adotado por Glória Perez. Há uma característica no texto do personagem Lobato (Osmar Prado) que faz a campanha diferir radicalmente das anteriores: em momento algum ele esconde o prazer que a droga proporciona ao viciado. "Lobato fala francamente que a droga é boa, ou não viciaria tantas pessoas. Mas dá o alerta sobre os perigos da dependência", diz o próprio Osmar Prado. "O grande trunfo é não usar meias palavras, falar de droga olhando no olho da tragédia. É assim que o tema deve ser tratado pela sociedade."

O texto de Lobato, personagem que concentra as contradições da dependência, foi construído com o auxílio do ex-dependente químico Robinson Damasceno, um publicitário de Belo Horizonte que se interessou pela trama e passou a escrever para Glória Perez cartas-relatos sobre sua experiência. "Respeito muito Ziraldo, mas a campanha que ele fez, dizendo que droga é uma merda, não funciona. Quem depende da droga sabe que ela não é ruim", afirma Damasceno. Ziraldo defende-se: "Usei a palavra merda para desglamourizar a droga. Hoje o que você vê é o contrário: a glamourização", diz o cartunista e escritor. "Existe até mesmo uma estética drogada na propaganda, com modelos de olhos fundos, jogadas num canto." Ziraldo não admira o tom da campanha de O Clone. "Aparecem ex-drogados falando que se livraram, e o adolescente, em casa, pode pensar que 'se aquele cara conseguiu sair, eu também saio'."

O discurso sobre as drogas na novela não tem a insegurança e a curiosidade dos 20 anos. É organizado pela geração mais velha, simbolizada por Lobato. É uma conversa de quarentões e cinqüentões - o que tem vantagens e desvantagens. São pessoas que já passaram pelas drogas ou pelo menos sabem o que é isso. Já viram o fim do filme e podem contar a história de trás para a frente. O debate é saber se, longe da novela, os jovens acreditam nesses argumentos.

A professora de psicologia da PUC-RJ Teresa de Góis Monteiro Negreiros elogia a novela por ter a coragem de não esconder os prazeres trazidos pelas drogas. " Essas substâncias não são problemáticas para todos. Há uma parcela, 15%, que ao tomar contato pode adoecer e ficar dependente. Mas como saber se você está no grupo de risco? Na dúvida, o ideal é se afastar", ensina.

O diretor do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes de Drogas do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo, Dartiu Xavier Silveira, critica a falta de precisão. "A novela diz que todo mundo que usa droga vira dependente. No caso da maconha, por exemplo, menos de 10% das pessoas que experimentam ficam dependentes." Segundo Silveira, isso contribuiria para aumentar o preconceito contra o drogado. "Se o álcool fosse mostrado equivocadamente como o é a maconha, alguém apareceria numa festa tomando um drinque e na cena seguinte já seria um alcoólatra", compara.

O publicitário Raul Pinto, diretor da Associação Parceria Contra Drogas, se surpreendeu com o discurso adotado. "Nestes anos de campanha, descobrimos que o caminho do amedrontamento não é bom. Não adianta falar com os jovens sobre morte. Eles convivem com muita gente que usa droga e sabem que a morte não acontece sempre." O diretor do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas da USP, o psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, faz coro: "Do ponto de vista médico, a abordagem está perfeita. Não é fácil fazer campanha antidrogas. Para quem usa, a meta é evitar que se tornem dependentes. Para quem ainda não usa, ou usa pouco, a mensagem deve ser convincente, mas não terrorista."



O efeito Clone

A sinceridade com que a novela das 8 aborda o problema das drogas fez crescer a procura pelas clínicas de tratamento



Ana Paula Franzoia

Os efeitos da campanha desenhada pela autora Glória Perez na novela O Clone começam a ser observados em consultórios e clínicas especializadas em tratamento contra o vício. São famílias e dependentes incentivados pelos duros exemplos exibidos na televisão. No Rio de Janeiro, em dois centros de recuperação de dependência química a procura quase dobrou. Na Aldeia Clínica, em Niterói, o perfil dos que buscam a cura passa por uma transformação: agora, com os capítulos já no ar, metade dos internos tem menos de 26 anos de idade. Antes da novela, os pacientes dessa faixa etária não ultrapassavam os 5% do total. Todos chegaram lá espontaneamente. Para o psiquiatra Frederico Vasconcelos, diretor da Aldeia, um dos méritos da novela é mudar a relação com a droga. "Antes as pessoas faziam a mesma coisa que fazem com o álcool, diziam que era sem-vergonhice. Não se tinha consciência de que a dependência é uma doença e tem cura", diz. Vasconcelos acredita que o fato de a personagem principal (Mel, interpretada por Débora Falabella) ser jovem contribuiu para aumentar a identificação com os mais novos. "Campanhas como essa custam muito menos que armar a polícia e são muito mais eficazes", afirma Vasconcelos. No Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad), também do Rio, o aumento da procura por tratamento atingiu os 60% desde que O Clone começou. A diretora Maria Thereza de Aquino diz que a novela promoveu um debate sobre o tema, até então considerado tabu. "As perguntas começam a surgir em casa e as pessoas ficam mais dispostas a falar", diz ela.

O fenômeno é nacional. Na principal instituição de tratamento de dependentes químicos de Pernambuco, o Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação Humana, o setor de atendimento registrou um crescimento dos casos de 50% em abril. Nos grupos de orientação familiar, a participação saltou de uma média de oito para 20 pessoas por sessão. Outro sinal positivo é o interesse de escolas pelas palestras desenvolvidas pelo Centro de Prevenção às Dependências, no Recife. Só na semana passada o número de solicitações foi maior que em todo o mês de março. "Era difícil romper essa barreira, principalmente nos colégios particulares, que encaravam o programa como marketing negativo", afirma a coordenadora do Centro. Em São Paulo o efeito Clone também começa a ser sentido. No Centro Especializado no Tratamento de Dependências de Álcool e Drogas (Cead), em Jundiaí, até o fim de março a média de telefonemas em busca de informações não passava de cinco por semana. A quantidade de ligações se multiplicou em abril e agora são cinco por dia. Coordenador do recém-inaugurado Programa do Hospital Albert Einstein de Tratamento de Dependentes de Álcool e Drogas, o psiquiatra Cláudio Jerônimo da Silva está surpreso com a força da campanha lançada por Glória Perez. "As pessoas querem saber mais sobre a dependência", diz.

Há, contudo, ressalvas ao que se vê na televisão. "É fundamental mostrar que existem níveis de dependência diferentes e que para cada pessoa cabe um tratamento", diz Jerônimo da Silva. "Nem sempre a internação é recomendada." Muitos médicos acham importante ressaltar - o que não ocorre na novela - que nem todo usuário se torna um dependente químico", diz. Glória Perez esgrime um argumento convincente em defesa de seu trabalho. Faz questão de dizer que está escrevendo uma novela, não um documentário. "Meu objetivo é mostrar que a dependência química é uma doença e apontar os caminhos de saída", afirma.

Campanhas como a de O Clone fazem parte de uma categoria conhecida como "merchandising social". "Essas ações, diferentemente do que se pensa, sempre resultaram em ótimos índices de audiência", diz o pesquisador Mauro Alencar, doutorando em teledramaturgia pela USP. A própria Glória já esteve por trás de outro exemplo. Em 1995, com Explode Coração, levou para a TV cartazes de crianças desaparecidas. "Graças à campanha da novela o porcentual de crianças encontradas passou de 55% para 80%", informa Luis Henrique Oliveira, gerente do programa SOS Crianças Desaparecidas da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA). "Todas as crianças mostradas na novela que tinham desaparecido há menos de um ano foram encontradas", comemora. Em 2000, o drama de Camila (Carolina Dieckman) na novela Laços de Família fez explodir o número de doadores de medula óssea. Segundo o Instituto Nacional do Câncer, antes da novela apenas cinco pessoas por semana se cadastravam como voluntários. Durante a novela, esse número pulou para 255. Hoje a média é de 150 por semana.

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