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Fortalecendo a sociedade civil no Brasil
Por GIFE - Rebecca Raposo   22 de maio de 2002
Desenvolvendo o investimento social privado numa democracia em consolidação
A filantropia brasileira não é um fenômeno novo. Desde que os portugueses deram início à colonização do Brasil como uma comunidade católica em 1500, as instituições beneficentes sempre estiveram presentes. Saúde e educação eram providas por organizações católicas, muitas das quais foram responsáveis (e ainda são em parte) pela educação de muitas gerações da elite, nascida, do mesmo modo, em hospitais católicos.
Essas instituições foram, em um momento da história do Brasil, praticamente os únicos provedores de serviços de educação e de saúde de qualidade no país. Então, o que há de novo na filantropia brasileira? A democratização. Foi essa variável que mudou a cara da filantropia doméstica.
Nos anos 80, o Brasil deu início à transição de uma ditadura militar para um regime democrático. Com uma "abertura lenta e gradual", como os militares costumavam caracterizar este processo, a sociedade brasileira começou a exercer seus direitos constitucionais, suspensos até então. O processo de desenvolvimento de uma nova e irreversível consciência política teve início.
Próximo ao final daquela década, quando a "abertura lenta e gradual" estava praticamente concluída, os brasileiros elegeram seu primeiro presidente em 29 anos. Nesta mesma época, a American Chamber of Commerce (Câmara Americana de Comércio) convoca uma conferência sobre filantropia, em São Paulo, que resultou na criação de um comitê sobre filantropia, apoiado pelas fundações Ford e Kellogg. Formado em sua maioria por empresas brasileiras e fundações corporativas, este grupo foi o primeiro sinal de que os recursos locais não só existiam, mas de que também tinham por trás deles poderosas empresas ansiosas por direcionar seus rumos para um setor filantrópico local forte. O grupo incluía fundações como Bradesco, Iochpe, Odebrecht e Roberto Marinho e outras organizações como o Instituto Itaú Cultural e a Vitae, além de empresas multinacionais do porte da Xerox e da Alcoa.
Em 1992, o governo recém-eleito enfrentou um processo de impeachment, que se tornou uma grande oportunidade para o exercício da cidadania por parte desta jovem e engajada sociedade civil. Uma série de denúncias de corrupção, algumas delas envolvendo instituições filantrópicas ligadas a políticos, aceleraram este processo.
Esse novo cenário democrático pedia um forte senso de cidadania entendido como um conjunto de direitos e de responsabilidades. A ligação da caridade católica com a filantropia brasileira era baseada nos esforços individuais de pessoas muito comprometidas, movidas por fortes convicções pessoais. Apesar de serem inquestionavelmente honoráveis, esses esforços eram uma resposta para a necessidade de acesso dos grupos de baixa renda aos direitos básicos como saúde e educação. A questão das responsabilidades, até então somente um problema para o Estado, permaneceu intocável por este conceito tradicional de filantropia, e a falta de desenvolvimento de autonomia, sem resposta.
A demanda por uma organização da sociedade civil capaz de mostrar à sociedade brasileira que o envolvimento da comunidade era parte da cidadania e que a filantropia podia ser, e era, feita de maneira ética, incentivou aquele comitê sobre filantropia a formalizar o grupo em 1995. O GIFE - Grupo de Institutos, Fundações e Empresas - foi incorporado por 25 dos hoje 66 membros, com a missão de aperfeiçoar e difundir conceitos e práticas do uso de recursos privados para o desenvolvimento do bem comum.
Assim, não foi por acaso que a primeira decisão formal do GIFE foi a aprovação de seu Código de Ética. Além de estabelecer parâmetros de conduta para a interação de seus membros com todos os seus stakeholders, o código impulsiona a agenda social ao definir o investimento social como resultado de um senso de responsabilidade e de reciprocidade com a sociedade. Uma distinção clara é feita entre investimento social privado e outras atividades, como marketing, promoção de vendas (visando lucro), políticas de recursos humanos e de benefícios para desenvolver e manter a força de trabalho, porque estes últimos, na verdade, dizem respeito ao negócio propriamente dito, e não à comunidade.
Essa distinção é particularmente importante se levarmos em conta o estágio de desenvolvimento no qual o setor sem fins lucrativos no Brasil se encontra atualmente.
O maior desafio do país é a sua concentração de renda. Nossa economia cresce, mas também aumenta a injusta distribuição de seus recursos. Apesar de ser a 10ª maior economia mundial, com um Produto Interno Bruto de US$ 742,8 bilhões, segundo o PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (World Development Report, 2000/2001), o Brasil é o 69º país em concentração de riqueza, atrás de outros 11 países da América Latina.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o "World Development Report" (Banco Mundial) mostram que nós entramos no século XXI com 10% de nossa população tendo 46,8% da renda do país, enquanto outros 20% sobrevivem com 3,6%.
Com dados tão vergonhosos, qualquer organização da sociedade civil realmente comprometida com a redução das desigualdades sociais do Brasil - especialmente uma ligada ao setor privado como o GIFE - deveria pensar profundamente sobre este fato. É primordial para estas organizações da sociedade civil garantir que a prática do investimento social contribua para a distribuição de renda, ou pelo menos, para não agravar a desigualdade - o que é bem possível se toda esta mobilização virasse uma simples estratégia de negócio.
Obviamente, enquanto o assunto for igualdade e justiça, é preciso dizer que o GIFE entende que um verdadeiro investidor social tem o direito de "esperar, como um subproduto de um investimento social exitoso, um maior valor agregado para sua imagem" (Código de Ética do GIFE). Se nosso foco de atuação é a mudança social, não é ético nem justo que o mercado e as fundações corporativas tirem proveito de suas ações sociais antes mesmo que a comunidade ganhe com os investimentos feitos. Em outras palavras, uma vez que a comunidade se aproprie da mudança social, o GIFE entende que o investidor pode sim agregar valor à sua marca, pois esta é uma situação na qual os dois lados ganham.
Se o injusto cenário socioeconômico brasileiro não é suficiente para sustentar a importância da clareza deste conceito de investimento social privado, dois outros fatores reforçam essa necessidade.
O volume de recursos canalizados em atividade sociais pelo setor privado é um deles. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), uma agência nacional independente, identificou que três das regiões mais ricas doaram recursos equivalentes a 10% de seu produto bruto. O Sudeste sozinho, a mais rica das três regiões, doou aproximadamente US$ 1,75 bilhão (R$ 3,5 bilhões) em 1998. Esta é uma soma considerável para um país em desenvolvimento. Se investida de forma correta, essa quantia poderia efetivamente resultar em mudança social.
A estrutura fiscal é o segundo fator que reforça a necessidade de clareza do conceito de investimento social privado. Hoje o ambiente é, para dizer o mínimo, pouco amigável. A melhora desta realidade é um desafio importante, na qual o GIFE tem trabalhado intensivamente com outras organizações representativas. Ao defender melhores incentivos fiscais, precisamos de clareza no conceito de investimento social privado. É preciso distinguir as ações de investimento social - recursos privados para fins públicos - dos investimentos com características sociais, mas para interesses privados, como definiu o GIFE em seu Código de Ética. Se não for assim, como poderemos convencer o governo e a sociedade de que as isenções fiscais solicitadas são destinadas ao bem público, e não para interesses privados? Como a verba arrecadada com impostos é pública, o GIFE está dando sua fatia de responsabilidade, deixando claro que seus membros dividem os mesmos conceitos consistentes. Esperamos que o governo faça sua parte, reconhecendo o importante papel que as cerca de 220 mil organizações da sociedade civil desempenharam nos últimos anos para melhorar a qualidade de vida de muitos cidadãos brasileiros excluídos.
A sociedade civil brasileira se orientou para mover adiante sua agenda social, transformando, na última década, referências e paradigmas que persistiram por séculos. A quantidade de dinheiro que está sendo doada é significante. O fato de que a filantropia existe apesar da falta de uma política de isenções fiscais mostra o nível elevado de comprometimento e interesse do setor privado. A decisão de apoiar projetos sustentáveis que trazem às comunidades independência e autonomia foi feita. Este é o momento ideal para uma participação mais forte de recursos nacionais. Os números acima mostram que isto não é somente desejável, mas também um cenário possível. É estratégico para o Brasil ter sua sociedade desenvolvida e completamente investida de poder.
Eu acredito que à medida que a economia se globaliza, levando os governos a definir e a articular políticas para proteger tais interesses, as organizações da sociedade civil deveriam, da mesma forma, tornar-se globais. Apesar de manter seu foco local, de onde essas organizações obtêm sua legitimidade, tornar-se global por meio das várias redes disponíveis é estratégico. É na arena internacional que a sociedade civil pode desempenhar seu mais importante papel: ajudar a regular os interesses dos governos e do mercado a favor de uma comunidade internacional mais equilibrada. À medida que os interesses dos três setores se entrelaçam, eu também acredito que transparência, responsabilidade financeira, informação e engajamento - os elementos básicos de uma sociedade sustentável - deveriam ser respeitados e estimados por governos, ONGs e mercado, da mesma forma. O GIFE está e permanece aberto à interação com todos.
Rebecca Raposo
Abril de 2002
A filantropia brasileira não é um fenômeno novo. Desde que os portugueses deram início à colonização do Brasil como uma comunidade católica em 1500, as instituições beneficentes sempre estiveram presentes. Saúde e educação eram providas por organizações católicas, muitas das quais foram responsáveis (e ainda são em parte) pela educação de muitas gerações da elite, nascida, do mesmo modo, em hospitais católicos.
Essas instituições foram, em um momento da história do Brasil, praticamente os únicos provedores de serviços de educação e de saúde de qualidade no país. Então, o que há de novo na filantropia brasileira? A democratização. Foi essa variável que mudou a cara da filantropia doméstica.
Nos anos 80, o Brasil deu início à transição de uma ditadura militar para um regime democrático. Com uma "abertura lenta e gradual", como os militares costumavam caracterizar este processo, a sociedade brasileira começou a exercer seus direitos constitucionais, suspensos até então. O processo de desenvolvimento de uma nova e irreversível consciência política teve início.
Próximo ao final daquela década, quando a "abertura lenta e gradual" estava praticamente concluída, os brasileiros elegeram seu primeiro presidente em 29 anos. Nesta mesma época, a American Chamber of Commerce (Câmara Americana de Comércio) convoca uma conferência sobre filantropia, em São Paulo, que resultou na criação de um comitê sobre filantropia, apoiado pelas fundações Ford e Kellogg. Formado em sua maioria por empresas brasileiras e fundações corporativas, este grupo foi o primeiro sinal de que os recursos locais não só existiam, mas de que também tinham por trás deles poderosas empresas ansiosas por direcionar seus rumos para um setor filantrópico local forte. O grupo incluía fundações como Bradesco, Iochpe, Odebrecht e Roberto Marinho e outras organizações como o Instituto Itaú Cultural e a Vitae, além de empresas multinacionais do porte da Xerox e da Alcoa.
Em 1992, o governo recém-eleito enfrentou um processo de impeachment, que se tornou uma grande oportunidade para o exercício da cidadania por parte desta jovem e engajada sociedade civil. Uma série de denúncias de corrupção, algumas delas envolvendo instituições filantrópicas ligadas a políticos, aceleraram este processo.
Esse novo cenário democrático pedia um forte senso de cidadania entendido como um conjunto de direitos e de responsabilidades. A ligação da caridade católica com a filantropia brasileira era baseada nos esforços individuais de pessoas muito comprometidas, movidas por fortes convicções pessoais. Apesar de serem inquestionavelmente honoráveis, esses esforços eram uma resposta para a necessidade de acesso dos grupos de baixa renda aos direitos básicos como saúde e educação. A questão das responsabilidades, até então somente um problema para o Estado, permaneceu intocável por este conceito tradicional de filantropia, e a falta de desenvolvimento de autonomia, sem resposta.
A demanda por uma organização da sociedade civil capaz de mostrar à sociedade brasileira que o envolvimento da comunidade era parte da cidadania e que a filantropia podia ser, e era, feita de maneira ética, incentivou aquele comitê sobre filantropia a formalizar o grupo em 1995. O GIFE - Grupo de Institutos, Fundações e Empresas - foi incorporado por 25 dos hoje 66 membros, com a missão de aperfeiçoar e difundir conceitos e práticas do uso de recursos privados para o desenvolvimento do bem comum.
Assim, não foi por acaso que a primeira decisão formal do GIFE foi a aprovação de seu Código de Ética. Além de estabelecer parâmetros de conduta para a interação de seus membros com todos os seus stakeholders, o código impulsiona a agenda social ao definir o investimento social como resultado de um senso de responsabilidade e de reciprocidade com a sociedade. Uma distinção clara é feita entre investimento social privado e outras atividades, como marketing, promoção de vendas (visando lucro), políticas de recursos humanos e de benefícios para desenvolver e manter a força de trabalho, porque estes últimos, na verdade, dizem respeito ao negócio propriamente dito, e não à comunidade.
Essa distinção é particularmente importante se levarmos em conta o estágio de desenvolvimento no qual o setor sem fins lucrativos no Brasil se encontra atualmente.
O maior desafio do país é a sua concentração de renda. Nossa economia cresce, mas também aumenta a injusta distribuição de seus recursos. Apesar de ser a 10ª maior economia mundial, com um Produto Interno Bruto de US$ 742,8 bilhões, segundo o PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (World Development Report, 2000/2001), o Brasil é o 69º país em concentração de riqueza, atrás de outros 11 países da América Latina.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o "World Development Report" (Banco Mundial) mostram que nós entramos no século XXI com 10% de nossa população tendo 46,8% da renda do país, enquanto outros 20% sobrevivem com 3,6%.
Com dados tão vergonhosos, qualquer organização da sociedade civil realmente comprometida com a redução das desigualdades sociais do Brasil - especialmente uma ligada ao setor privado como o GIFE - deveria pensar profundamente sobre este fato. É primordial para estas organizações da sociedade civil garantir que a prática do investimento social contribua para a distribuição de renda, ou pelo menos, para não agravar a desigualdade - o que é bem possível se toda esta mobilização virasse uma simples estratégia de negócio.
Obviamente, enquanto o assunto for igualdade e justiça, é preciso dizer que o GIFE entende que um verdadeiro investidor social tem o direito de "esperar, como um subproduto de um investimento social exitoso, um maior valor agregado para sua imagem" (Código de Ética do GIFE). Se nosso foco de atuação é a mudança social, não é ético nem justo que o mercado e as fundações corporativas tirem proveito de suas ações sociais antes mesmo que a comunidade ganhe com os investimentos feitos. Em outras palavras, uma vez que a comunidade se aproprie da mudança social, o GIFE entende que o investidor pode sim agregar valor à sua marca, pois esta é uma situação na qual os dois lados ganham.
Se o injusto cenário socioeconômico brasileiro não é suficiente para sustentar a importância da clareza deste conceito de investimento social privado, dois outros fatores reforçam essa necessidade.
O volume de recursos canalizados em atividade sociais pelo setor privado é um deles. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), uma agência nacional independente, identificou que três das regiões mais ricas doaram recursos equivalentes a 10% de seu produto bruto. O Sudeste sozinho, a mais rica das três regiões, doou aproximadamente US$ 1,75 bilhão (R$ 3,5 bilhões) em 1998. Esta é uma soma considerável para um país em desenvolvimento. Se investida de forma correta, essa quantia poderia efetivamente resultar em mudança social.
A estrutura fiscal é o segundo fator que reforça a necessidade de clareza do conceito de investimento social privado. Hoje o ambiente é, para dizer o mínimo, pouco amigável. A melhora desta realidade é um desafio importante, na qual o GIFE tem trabalhado intensivamente com outras organizações representativas. Ao defender melhores incentivos fiscais, precisamos de clareza no conceito de investimento social privado. É preciso distinguir as ações de investimento social - recursos privados para fins públicos - dos investimentos com características sociais, mas para interesses privados, como definiu o GIFE em seu Código de Ética. Se não for assim, como poderemos convencer o governo e a sociedade de que as isenções fiscais solicitadas são destinadas ao bem público, e não para interesses privados? Como a verba arrecadada com impostos é pública, o GIFE está dando sua fatia de responsabilidade, deixando claro que seus membros dividem os mesmos conceitos consistentes. Esperamos que o governo faça sua parte, reconhecendo o importante papel que as cerca de 220 mil organizações da sociedade civil desempenharam nos últimos anos para melhorar a qualidade de vida de muitos cidadãos brasileiros excluídos.
A sociedade civil brasileira se orientou para mover adiante sua agenda social, transformando, na última década, referências e paradigmas que persistiram por séculos. A quantidade de dinheiro que está sendo doada é significante. O fato de que a filantropia existe apesar da falta de uma política de isenções fiscais mostra o nível elevado de comprometimento e interesse do setor privado. A decisão de apoiar projetos sustentáveis que trazem às comunidades independência e autonomia foi feita. Este é o momento ideal para uma participação mais forte de recursos nacionais. Os números acima mostram que isto não é somente desejável, mas também um cenário possível. É estratégico para o Brasil ter sua sociedade desenvolvida e completamente investida de poder.
Eu acredito que à medida que a economia se globaliza, levando os governos a definir e a articular políticas para proteger tais interesses, as organizações da sociedade civil deveriam, da mesma forma, tornar-se globais. Apesar de manter seu foco local, de onde essas organizações obtêm sua legitimidade, tornar-se global por meio das várias redes disponíveis é estratégico. É na arena internacional que a sociedade civil pode desempenhar seu mais importante papel: ajudar a regular os interesses dos governos e do mercado a favor de uma comunidade internacional mais equilibrada. À medida que os interesses dos três setores se entrelaçam, eu também acredito que transparência, responsabilidade financeira, informação e engajamento - os elementos básicos de uma sociedade sustentável - deveriam ser respeitados e estimados por governos, ONGs e mercado, da mesma forma. O GIFE está e permanece aberto à interação com todos.
Rebecca Raposo
Abril de 2002