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pecado original e a criminalidade
Por Jornal Valor - Sergio Amoroso   24 de julho de 2002
Toda vez que uma nação vive determinada crise aguda, em meio a propostas
lúcidas surgem, também, sugestões desencontradas, baseadas em falsas
premissas, que acabam prosperando no meio da sociedade e dos poderes
constituídos. Fenômeno desta natureza pode ser observado atualmente no
Brasil, onde a criminalidade, além de disseminar o medo no inconsciente
coletivo, tem gerado algumas iniciativas equivocadas e/ou distorcido o foco
real de problemas concretos e graves.
Um dos mais claros exemplos nesse sentido é o "pecado original" que se imputa a milhões de crianças e adolescentes de baixa renda e/ou abandonados, precocemente estigmatizados como potenciais contraventores ou criminosos. Este olhar perverso, distorcido e preconceituoso reflete-se nos debates travados pela mídia, nas reivindicações de numerosos cidadãos e até mesmo na agenda legislativa, como demonstram os projetos de lei propondo a redução da idade penal dos 18 para os 16, 14 ou até 11 anos, em trâmite no Congresso Nacional. As propostas apresentam alterações em uma cláusula da Constituição Federal de 1988, desqualificando o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento jurídico regulador.
Não se trata aqui de analisar a correção ou equívoco da redução da idade penal ou de condenar a reação, justa e quase desesperada, de toda a sociedade brasileira, especialmente nas grandes cidades, contra a violência desenfreada de que tem sido vítima. Trata-se, sim, de buscar oferecer contribuição para que prevaleça a lucidez e se mantenha à luz sugestões menos apaixonadas, mais eficientes e abrangentes sobre os problemas nacionais. Claro que são necessárias medidas eficazes, já, contra a onda de criminalidade. E isto é missão da polícia; claro que, independentemente do crescimento da violência, o Brasil precisa encontrar soluções para as crianças e adolescentes excluídos. As duas verdades, contudo, não se solucionariam com a simples redução da idade penal. Se a medida é certa ou errada, não importa; o que importa é que não é prioritária.
Prioritário, mesmo, é encontrar a equação adequada ao cumprimento integral do Estatuto da Criança e do Adolescente, tirando da exclusão e elevando acima da linha da miséria algumas centenas de milhares de jovens brasileiros aos quais não se manifesta a presença do Estado e da sociedade. Sem cidadania, enfrentam a incerteza do futuro, riscos diários de vida, medo, muito medo, e paradoxal coragem, forjada na híbrida interação da fragilidade infantil e do instinto atávico da preservação das espécies. Sentimentos anárquicos, incompreensíveis, gerando impulsos de violência, que oferecem à sociedade, com valores invertidos, a falsa premissa da criança criminosa.
Às ações dos menores infratores precede o crime maior - em cinco séculos desde o Descobrimento - da omissão no trato das crianças e adolescentes. "Mais importante do que alfabetizar as crianças indígenas era destruir nelas a cultura de seus pais", observa Nélson Werneck Sodré, referindo-se ao descaso com a educação na Colônia, num exemplo, muito emblemático, da cronologia do abandono da infância e da juventude. As lições da história devem ser aprendidas, possibilitando que se vislumbre o futuro com perspectivas mais otimistas.
Errar é humano. Repetir o erro, no caso das crianças e adolescentes brasileiros, é desumano. Felizmente, percebe-se um movimento mais sério de resgate da infância e juventude. É animador verificar o foco com que o problema começa a ser tratado, ou seja, com visão multidisciplinar. É necessário investir de forma abrangente na formação integral da criança e do adolescente. Ações nesse sentido são responsabilidade do Estado e da sociedade, numa atuação articulada e intercomplementar.
O terceiro setor - mobilização da iniciativa privada em prol do público, do bem comum - cresce no País, assim como as mãos que se estendem à questão da infância e da juventude. Há experiências muito bem-sucedidas na linha da atenção integral, como a da Fundação Orsa, que realizou 731 mil atendimentos em 2001, integrando saúde, educação e promoção social. O universo representado por esse número demonstra que o modelo, praticado também por outras instituições, já transcende ao empirismo, indicando haver um atalho seguro para o necessário resgate histórico.
É necessário, porém, que mais e mais organizações privadas engajem-se nesse processo, considerando a magnitude do problema e o fato de que, pelo menos na presente conjuntura, os investimentos estatais no social estão no limite das possibilidades orçamentárias. Torna-se fundamental refocar o investimento na causa para correção do efeito. Esta rediscussão do problema é saudável e pode conferir luz ao investimento do Estado, que, muitas vezes, poderia ter potencial maior do que o atual.
A multiplicação dos investimentos é imprescindível à expiação do falso "pecado original" que estigmatiza a infância e a juventude excluídas. Esse esforço, se bem-sucedido - e tem de ser - demonstrará o quanto está equivocada a atual leitura que se faz sobre a prática precoce da violência.
Sergio Amoroso é presidente do Grupo Orsa e instituidor da Fundação Orsa
E-mail: rvo@viveiros.com.br
Um dos mais claros exemplos nesse sentido é o "pecado original" que se imputa a milhões de crianças e adolescentes de baixa renda e/ou abandonados, precocemente estigmatizados como potenciais contraventores ou criminosos. Este olhar perverso, distorcido e preconceituoso reflete-se nos debates travados pela mídia, nas reivindicações de numerosos cidadãos e até mesmo na agenda legislativa, como demonstram os projetos de lei propondo a redução da idade penal dos 18 para os 16, 14 ou até 11 anos, em trâmite no Congresso Nacional. As propostas apresentam alterações em uma cláusula da Constituição Federal de 1988, desqualificando o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento jurídico regulador.
Não se trata aqui de analisar a correção ou equívoco da redução da idade penal ou de condenar a reação, justa e quase desesperada, de toda a sociedade brasileira, especialmente nas grandes cidades, contra a violência desenfreada de que tem sido vítima. Trata-se, sim, de buscar oferecer contribuição para que prevaleça a lucidez e se mantenha à luz sugestões menos apaixonadas, mais eficientes e abrangentes sobre os problemas nacionais. Claro que são necessárias medidas eficazes, já, contra a onda de criminalidade. E isto é missão da polícia; claro que, independentemente do crescimento da violência, o Brasil precisa encontrar soluções para as crianças e adolescentes excluídos. As duas verdades, contudo, não se solucionariam com a simples redução da idade penal. Se a medida é certa ou errada, não importa; o que importa é que não é prioritária.
Prioritário, mesmo, é encontrar a equação adequada ao cumprimento integral do Estatuto da Criança e do Adolescente, tirando da exclusão e elevando acima da linha da miséria algumas centenas de milhares de jovens brasileiros aos quais não se manifesta a presença do Estado e da sociedade. Sem cidadania, enfrentam a incerteza do futuro, riscos diários de vida, medo, muito medo, e paradoxal coragem, forjada na híbrida interação da fragilidade infantil e do instinto atávico da preservação das espécies. Sentimentos anárquicos, incompreensíveis, gerando impulsos de violência, que oferecem à sociedade, com valores invertidos, a falsa premissa da criança criminosa.
Às ações dos menores infratores precede o crime maior - em cinco séculos desde o Descobrimento - da omissão no trato das crianças e adolescentes. "Mais importante do que alfabetizar as crianças indígenas era destruir nelas a cultura de seus pais", observa Nélson Werneck Sodré, referindo-se ao descaso com a educação na Colônia, num exemplo, muito emblemático, da cronologia do abandono da infância e da juventude. As lições da história devem ser aprendidas, possibilitando que se vislumbre o futuro com perspectivas mais otimistas.
Errar é humano. Repetir o erro, no caso das crianças e adolescentes brasileiros, é desumano. Felizmente, percebe-se um movimento mais sério de resgate da infância e juventude. É animador verificar o foco com que o problema começa a ser tratado, ou seja, com visão multidisciplinar. É necessário investir de forma abrangente na formação integral da criança e do adolescente. Ações nesse sentido são responsabilidade do Estado e da sociedade, numa atuação articulada e intercomplementar.
O terceiro setor - mobilização da iniciativa privada em prol do público, do bem comum - cresce no País, assim como as mãos que se estendem à questão da infância e da juventude. Há experiências muito bem-sucedidas na linha da atenção integral, como a da Fundação Orsa, que realizou 731 mil atendimentos em 2001, integrando saúde, educação e promoção social. O universo representado por esse número demonstra que o modelo, praticado também por outras instituições, já transcende ao empirismo, indicando haver um atalho seguro para o necessário resgate histórico.
É necessário, porém, que mais e mais organizações privadas engajem-se nesse processo, considerando a magnitude do problema e o fato de que, pelo menos na presente conjuntura, os investimentos estatais no social estão no limite das possibilidades orçamentárias. Torna-se fundamental refocar o investimento na causa para correção do efeito. Esta rediscussão do problema é saudável e pode conferir luz ao investimento do Estado, que, muitas vezes, poderia ter potencial maior do que o atual.
A multiplicação dos investimentos é imprescindível à expiação do falso "pecado original" que estigmatiza a infância e a juventude excluídas. Esse esforço, se bem-sucedido - e tem de ser - demonstrará o quanto está equivocada a atual leitura que se faz sobre a prática precoce da violência.
Sergio Amoroso é presidente do Grupo Orsa e instituidor da Fundação Orsa
E-mail: rvo@viveiros.com.br