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O Brasil é o país do futuro... (E por que não?)
Por Consumidor Moderno    29 de julho de 2002
Quem nunca sentiu um aperto no coração quando ao parar num semáforo vê uma
criança pedindo dinheiro ou comida para matar sua fome? Uma cena como essa,
infelizmente ainda freqüente - principalmente nas grandes cidades -, nos
leva a reflexões sobre nós mesmos, com a percepção de quão afortunados somos
com nossa vida; ou sobre a culpa do governo por permitir aquela situação.
Mas, geralmente minutos depois, a fechada de algum motorista desatento deixa
a miséria para trás.
Por outro lado, de alguns anos para cá percebemos que muitos não ficam mais de braços cruzados esperando que a solução caia do céu ou que o Estado resolva todos os problemas de exclusão social do Brasil. O que vemos hoje é um movimento que leva a iniciativa privada e a sociedade civil a lutarem por um País mais justo, muitas vezes em parceria com o próprio governo - e esse é o caminho.
Utopia? Não. O ser humano está melhor? Talvez. Mas pelo ponto de vista dos negócios, não é difícil perceber uma lógica quase linear: investimentos em programas de educação ou profissionalização para menores carentes que os qualifiquem para empregos podem gerar consumidores no futuro. Em parale- lo, consumidores também exigem das empresas maior participação social. Isso tudo faz com que compa- nhias busquem atuação socialmente responsável. "Só há poucos anos as empresas são vistas como atores importantes no processo de responsabilidade social. Até então, o papel era invisível e as ações, isoladas", explica Valdemar de Oliveira Neto, superintendente do Instituto Ethos. "Hoje, porém, as empresas dedicam a esses projetos 30% do que o governo federal gasta na área social, excluindo previdência." Mas, segundo ele, o papel da iniciativa privada é limitado no campo social; as empresas precisam é participar da vida da comunidade apoiando iniciativas locais. "Para que o apoio tenha impacto social de longo prazo, é importante que a ação seja articulada com Estado e comunidades locais. Ação social não é a missão principal das empresas, que devem apoiar aqueles cujo foco seja este".
A parceria entre os três atores foi a tônica de muitas palestras durante a Conferência Nacional 2002 promovida pelo Ethos, que contou com 650 inscritos. Há quatro anos, o desafio em sua primeira edição era envolver a iniciativa privada no conceito de responsabilidade social. Este ano, a maior maturidade das empresas foi visível. "As questões mudaram. Não se quer mais saber por que fazer, mas como", diz Oliveira Neto, observando que o público está mais atuante e bem informado, o que é percebido pela qualidade das perguntas. "Todos lutamos para tornar não só as empresas, mas o mundo socialmente responsável. Esse é o desafio de cada um de nós", comentou Oded Grajew, presidente do Ethos. Outra questão sempre reafirmada: o exemplo começa em casa - ou seja, de nada vale a empresa tentar ser exemplar perante
seus públicos externos se internamente não respeita ou registra seus funcionários, sonega impostos e não tem qualidade em seus produtos e serviços.
Um dos destaques da conferência foi Stephan Schmidheiny, empresário suíço, fundador do Conselho Mundial Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável e presidente da Avina, entidade que se associa aos líderes da sociedade civil e do empresariado em suas iniciativas e projetos com foco em desenvolvimento sustentável. Ele lembrou que a busca da sustentabilidade permite que as companhias sejam melhores e que no Brasil as diferenças sociais ainda são muito grandes. "Os 20% mais pobres da população recebem apenas 3% da renda nacional, provando que as empresas ainda falham na construção de um desenvolvimento sustentável", observou.
Schmidheiny ressaltou que o mundo é formado por 11% de ricos, 11% de classe média e 78% de pobres, e as empresas se empenham em vender para 22% da população. "A questão é atingir os quase 80% que nunca foram clientes. O empresariado não pode prosperar numa sociedade fracassada", defendeu. "Nossos filhos, no futuro, jamais nos perdoariam por não tentar." Para ele, ainda falta às companhias o que chama de solidariedade egoísta. "As organizações não-governamentais conhecem os pobres e as companhias sabem inovar. Juntos podem formar uma aliança poderosa", diz. "Nenhum setor acredita que o governo sozinho criará condições para o desenvolvimento sustentável."
As parcerias representam um bom caminho para projetos eficientes e muitas empresas as adotam para melhorar seu desempenho. "A aplicação, no entanto, deve ser bem escolhida para termos resposta positiva da sociedade", afirmou Sérgio Mindlin, diretor-presidente da Fundação Telefônica e responsável por
uma iniciativa que visa a prover maior educação e proteção, além de auxílio em redes eletrônicas, a crianças e adolescentes residentes nas regiões de atuação da operadora. Para isso, a fundação firmou parceria com os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), beneficiando até agora mil crianças.
Outra que também adota o modelo é a Fundação Telemig Celular. Com dez projetos também destinados a crianças e adolescentes em Minas Gerais, criou um processo para buscar parceiros para cada ação implementada. "Criamos um diagnóstico da situação do setor no Estado, e selecionamos parceiros específicos que melhor se encaixavam em cada projeto", conta Francisco Azevedo, diretor-executivo da fundação.
Desenvolvimento local
"Não podemos só esperar que o Estado traga soluções para os enormes desafios da pobreza e da desigualdade. É importante envolver a sociedade organizada com propostas e os agentes produtivos, para que essa nova articulação possa construir uma alternativa de desenvolvimento com mais equidade para o Brasil". A declaração é de Tânia Zapata, coordenadora de cooperação BNDES/ PNDU para o Gespar (Gestão Participativa para o Desenvolvimento Local), projeto que nasceu há um ano e meio e atua principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Com foco em atuação pedagógica, o Gespar visa a sensibilizar e capacitar parceiros estratégicos, como empresas, governos e ONGs. "Precisamos partir da base, fortalecer as organizações sociais, criar estratégias integradas para as instituições e definir eixo focado em desenvolvimento local", afirmou Tânia.
"Nas parcerias é preciso trabalhar com as mesmas crenças, senão vamos nos juntar para nada", comen- tou ela. "Não há ninguém melhor para gerir os recursos públicos locais do que a própria comunidade", completou Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica (SP). "Dinheiro não tem idéias, quem as têm é quem necessita dele e sabe onde deve ser aplicado."
Tânia acredita que quanto mais as empresas estiverem conscientes de que terão retorno sustentável de seus investimentos na medida da integração ao desenvolvimento do território, mais terão condições de obter esse retorno. "Isso ainda é muito incipiente no Brasil, mas o futuro é promissor: os empresários enxergarão mais e mais se uma sociedade educada, informada e organizada será melhor para os negócios", destacou. Segundo ela, o Estado mantém papel importante nas infra-estruturas do País e na responsabilidade por políticas de saúde e educação. Mas na política do desenvolvimento econômico, todos os atores devem construir nova forma de concebê-lo, surgindo a proposta de articular mercado, empresas e sociedade organizada para sugerir políticas de desenvolvimento. "No País muita coisa já está acontecendo na base de sociedade e municípios", observou. "É aí que haverá pressão por melhores prefeitos, deputados e, conseqüentemente, mudança das elites que até hoje ditam os rumos do País. O Brasil está cheio de planos, o problema é a implementação de transparência e controle social, só pode acontecer quando existe capital social."
Consumidores ligados
"As pessoas redefiniram o processo das empresas na sociedade. Hoje as empresas devem desempenhar papéis que antes eram do governo", afirmou Doug Miller, presidente da Environics International Limited, empresa de consultoria e pesquisa com sede no Canadá. Segundo ele, 25 mil entrevistas feitas ao redor do mundo indicam a expectativa dos brasileiros que as companhias se desenvolvam por uma sociedade melhor. "Os brasileiros têm muito claro o papel da conquista social, e estão preocupados com problemas ambientais e com o futuro de seus filhos e netos", comentou.
Citando o exemplo da Nike, que em dois meses perdeu 20% da participação de mercado nos Estados Unidos por usar trabalho infantil na produção de tênis na Ásia, Miller afirmou que a responsabilidade social faz grande diferença tanto no trabalho como nos meios de consumo. "Quem tem responsabilidade social aumenta a lealdade de consumidores e funcionários e não tem reputação abalada", apontou. "A sociedade brasileira está se movimentando no mesmo ritmo dos países do G7 (os mais ricos do mundo) e superando outros." E dá o exemplo. "Enquanto no Brasil as palestras ficam com gente até do lado de fora, em outros países é feito grande es-forço para reunir 200 pessoas."
Para Hélio Mattar, presidente do Instituto Akatu e da Fundação Abrinq, por muitos anos a única relação entre consumidor e companhias foi a compra dos produtos - por sua qualidade, não em função das empresas. "Era um mundo mais simples. A marca era tudo. O desafio era produzir mais e o consumidor se adequava às ofertas do mercado", lembrou. De acordo com ele, porém, o maior nível de informação da sociedade leva o consumidor a ressoar o que sabe sobre uma empresa em suas compras. "As companhias não podem mais se esconder atrás de seus produtos. O consumo é um exercício de identidade para o consumidor, que já diz não a muitas coisas. Responsabilidade social é a prática do dia-a-dia se refletindo em todas as suas ações", disse Mattar. Segundo ele, o desafio é passar a imagem para a reputação da marca, como expressão cotidiana de valores e princípios colocados na prática. "Assim os elementos estarão tatuados no consumidor, criando vínculo afetivo com a empresa."
Preconceito racial no Brasil
O movimento de responsabilidade social assola o País, mas ainda é impressionante como os negros que vivem no Brasil sofrem com o preconceito racial - apesar da maioria de empresas e cidadãos não admitir a discriminação. Sueli Carneiro, diretora-executiva do Geledés - Instituto da Mulher Negra, emocionou os presentes lembrando que o primeiro passo para combater a discriminação é admiti-la. "O pior tipo de racismo é o que temos aqui: velado de uma falsa democracia racial, em que as diferenças não são valorizadas, mas usadas como forma de exclusão", diz.
Os números comprovam: embora 44% dos brasileiros sejam negros, apenas 2% chegam às universidades. Dos 53 milhões de pobres do Brasil, 70% são negros. Os que, a duras penas, ingressam no mercado de trabalho, ganham menos que brancos ocupando o mesmo cargo - pior ainda se for mulher. Estudo de ONGs ligadas à promoção dos direitos humanos apontou que se o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, que em 1999 ficou em 74º lugar mundial, considerasse só a população branca, subiria para a 49ª posição; levando-se em conta apenas a população negra, cairia para o 108º lugar.
Para reverter essa situação, Sueli acredita que medidas compensatórias como garantia de cotas em universidades e repartições públicas são um primeiro passo, mas falta a implementação de políticas de democratização racial. "Cor da pele não é critério de seleção", defendeu. "A condição de vítima não estava escrita na História, foi construída. Queremos nos tornar agentes participativos para o desenvolvimento do País, que se foi capaz de construir o mito da democracia racial, poderá também torná-lo realidade", finalizou Sueli, aplaudida de pé pelos mais de 600 ouvintes.
Empresas e sociedade
Durante o evento, foram divulgados os dados da pesquisa "A ação social das empresas no Brasil", realizada em todo o País pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo a coordenadora geral de projetos especiais Ana Maria Peliano, o levantamento aponta que 59% das empresas privadas brasileiras com um ou mais empregados realizam algum tipo de atividade em benefício da comunidade. Ao todo, cerca de 465 mil companhias de todos os portes aplicaram 4,7 bilhões de reais em 2000 (83% desembolsados por empresas da região Sudeste, 7% do Sul, 6% do Nordeste, 3% Centro-Oeste e 1% da região Norte). Parece muito, mas representa apenas 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. "Mas tende a crescer, já que 39% das empresas declaram que pretendem ampliar sua atuação", diz Ana Maria.
Segundo o estudo, a maior participação na área social é de empresas de grande porte, com mais de 500 empregados: 88% financiam ou apóiam ações em benefício da comunidade, contra 54% daquelas com entre um e dez funcionários e 69% das que têm entre 11 e 100 empregados. No total, 76% das empresas apontaram ser movidas pela filantropia; as áreas de assistência social (54%) e alimentação (41%) são prioritárias e a maioria (62%) está voltada à idade infantil. No setor de comércio, 61% das empresas atuam na área social. Na indústria, 60%, e em serviços, 58%. O próximo passo do Ipea, segundo Ana Maria, é detectar que tipo de empresa, de que setor, investe em quais áreas, como educação ou meio ambiente.
De acordo com ela, as empresas começaram a atuar com mais intensidade na área social a partir de 1990 quando houve maior mobilização da sociedade para as questões sociais, a Eco 92 e o boom das ONGs. "Hoje, responsabilidade social não é moda, é exigência", disse. Ana Maria frisou que o pecado das empresas em suas ações sociais é ficarem presas a necessidades emergenciais da comunidade, pulverizarem recursos e centralizarem a gestão das ações. "Os funcionários devem ser participativos, podendo interferir nas comunidades", afirmou.
Em contrapartida, ela lembrou avanços como maior sentimento de responsabilidade social empresarial e inserção do assunto em estratégias; participação pró-ativa; parcerias com comunidades; preocupação com resultados em ações comprometidas com metas; divulgação das ações, para disseminar a experiência; e aproximação com o Estado. "Mais de 40% de empresas do Sudeste já apóiam programas governamentais", observou.
Responsabilidade social para o sucesso das marcas
Adrian Hodges, diretor para América Latina da Prince of Wales Business Leader's Forum (PWBLF), afirmou que grande parte dos empresários já percebeu que a prática da boa cidadania corporativa é capaz de garantir a sustentabilidade de seus negócios e o sucesso das marcas. "Há uma oportunidade das empresas se diferenciarem", destacou. "Às vezes leva 20 anos para construir uma marca e cinco minutos para destruí-la. Assim como a sociedade influencia os negócios, o contrário também acontece." David Murphy, diretor de projetos da New Academy of Business, observa que a responsabilidade empresarial torna-se cada vez mais necessária para a sobrevivência das corporações. "A sociedade civil está mais atenta aos procedimentos internos das empresas, por isso a clareza nos negócios é fundamental."
O outro lado da moeda
A participação empresarial na vida da comunidade carente tem beneficiado muita gente. Mas até que ponto a iniciativa privada o faz por questões humanitárias? Stephen Kanitz, criador do Prêmio Bem Eficiente, que avalia o desempenho das entidades sociais brasileiras, acredita que as empresas devem ter cautela ao investirem em ações sociais. Ele ressalta que isso não quer dizer que não sejam socialmente responsáveis. "Pagar impostos, tratar bem funcionários, cuidar do meio ambiente e ter bons produtos e serviços é obrigação", diz Kanitz.
Ele define três tipos de empresas. Um, cerca de 5% do total, as que realmente assumem uma postura de responsabilidade social - geralmente pequenas e médias que contribuem por doações do próprio dono, numa atitude ética do empresário. Depois, as que querem só fazer marketing social e escolhem projetos pensando naqueles que mais agradam ao consumidor (25%). Por fim, com 70% das empresas, aquelas que querem atuar com ações sociais, começam com postura humanitária, mas acabam se deixando levar por alguém da empresa que quer tornar o projeto conhecido. "É quando alguém diz: vamos tentar ganhar algum prêmio de responsabilidade social", diz Kanitz.
Para não adotar postura que não seja a humanitária, o consultor é a favor de doações. "As políticas públicas devem ser determinadas pelo Estado ou pelo ser humano, como posição ética do indivíduo ou como filosofia de vida", opina o consultor, dizendo não gostar do modelo neoliberal de que responsabilidade social é das companhias, porque "faz com que empresários usem critérios de negócios para decidir como o dinheiro será gasto na área social, muitas vezes baseados em retorno sobre o investimento. Nesse setor devem ser usados critérios humanitários, não neoliberais", afirma Kanitz. "Lucro não deve ser o foco na área social." Recentemente, ele inaugurou um site de doações on-line (www.filantropia.org) que reúne as 400 maiores entidades do País e os 40 maiores bancos. O interessado escolhe a entidade e deposita diretamente no banco para a instituição. "É mais fácil uma entidade arrecadar dez reais de cinco mil pessoas diferentes do que conseguir 50 mil reais de uma empresa", diz o consultor. "Elas estão parando de doar para investir em projetos próprios." Outro projeto é o "Cheque Donativo": Kanitz e os outros três autores do livro Ponto de Vista doarão três reais dos direitos autorais para a entidade que o leitor escolher para sua própria doação - um cheque donativo acompanha cada exemplar do livro.
A união faz a força
A primeira dama Ruth Cardoso, presidente do "Comunidade Solidária", acredita que a parceria entre Estado, empresas e sociedade civil nas ações sociais é fundamental para o desenvolvimento de um país. "Creio que em todo o mundo caminha-se cada vez mais para uma congruência das ações entre a sociedade civil, os governos e as empresas privadas. Nesse sentido, instituições e ONGs, por exemplo, têm um papel importante como parceiras no processo de formulação das políticas sociais", diz. "Temos de entender que a sociedade civil organizada trabalha em função do interesse público. Por ter acumulado um volume considerável de experiências e de conhecimento em sua atuação na área social, ela apresenta-se como indispensável companheira do governo no enfrentamento da pobreza, das desigualdades e da exclusão social".
Segundo ela, é dessa forma que se organizam todos os programas ligados ao "Comunidade Solidária" e cita o exemplo do "Alfabetização Solidária'. "A ação junto às comunidades com altos índices de analfabetismo entre jovens de 12 a 18 anos é realizada pelos alfabetizadores, a maioria moradores dos próprios municípios em que o programa atua. Cada alfabetizador é capacitado por professores das universidades parceiras e acompanhado por monitores. A prefeitura do município atendido se responsabiliza pela cessão da estrutura física (salas de aula) e o financiamento é dividido entre o MEC (que também se responsabiliza pelo material didático), e empresas privadas", explica. "A aposta é que, com uma articulação bem realizada - que consiga credibilidade entre financiadores, atores sociais e público-alvo dos projetos - as iniciativas tenham prosseguimento independentemente do governo que esteja no poder", comenta.
Quanto à atuação do "Comunidade Solidária", dona Ruth a considera como um instrumento inovador de ação social. "Todos os programas mostram resultados bastante animadores em seus balanços. Gosto de chamar a atenção para o "Artesanato" porque ele tem mostrado às famílias que não precisam abandonar suas comunidades para tentar melhor sorte nos grandes centros. Resgata-se, assim não só a cultura local mas também, a auto-estima dos artesãos, e os coloca na posição de atores ativos no seu processo".
Por outro lado, de alguns anos para cá percebemos que muitos não ficam mais de braços cruzados esperando que a solução caia do céu ou que o Estado resolva todos os problemas de exclusão social do Brasil. O que vemos hoje é um movimento que leva a iniciativa privada e a sociedade civil a lutarem por um País mais justo, muitas vezes em parceria com o próprio governo - e esse é o caminho.
Utopia? Não. O ser humano está melhor? Talvez. Mas pelo ponto de vista dos negócios, não é difícil perceber uma lógica quase linear: investimentos em programas de educação ou profissionalização para menores carentes que os qualifiquem para empregos podem gerar consumidores no futuro. Em parale- lo, consumidores também exigem das empresas maior participação social. Isso tudo faz com que compa- nhias busquem atuação socialmente responsável. "Só há poucos anos as empresas são vistas como atores importantes no processo de responsabilidade social. Até então, o papel era invisível e as ações, isoladas", explica Valdemar de Oliveira Neto, superintendente do Instituto Ethos. "Hoje, porém, as empresas dedicam a esses projetos 30% do que o governo federal gasta na área social, excluindo previdência." Mas, segundo ele, o papel da iniciativa privada é limitado no campo social; as empresas precisam é participar da vida da comunidade apoiando iniciativas locais. "Para que o apoio tenha impacto social de longo prazo, é importante que a ação seja articulada com Estado e comunidades locais. Ação social não é a missão principal das empresas, que devem apoiar aqueles cujo foco seja este".
A parceria entre os três atores foi a tônica de muitas palestras durante a Conferência Nacional 2002 promovida pelo Ethos, que contou com 650 inscritos. Há quatro anos, o desafio em sua primeira edição era envolver a iniciativa privada no conceito de responsabilidade social. Este ano, a maior maturidade das empresas foi visível. "As questões mudaram. Não se quer mais saber por que fazer, mas como", diz Oliveira Neto, observando que o público está mais atuante e bem informado, o que é percebido pela qualidade das perguntas. "Todos lutamos para tornar não só as empresas, mas o mundo socialmente responsável. Esse é o desafio de cada um de nós", comentou Oded Grajew, presidente do Ethos. Outra questão sempre reafirmada: o exemplo começa em casa - ou seja, de nada vale a empresa tentar ser exemplar perante
seus públicos externos se internamente não respeita ou registra seus funcionários, sonega impostos e não tem qualidade em seus produtos e serviços.
Um dos destaques da conferência foi Stephan Schmidheiny, empresário suíço, fundador do Conselho Mundial Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável e presidente da Avina, entidade que se associa aos líderes da sociedade civil e do empresariado em suas iniciativas e projetos com foco em desenvolvimento sustentável. Ele lembrou que a busca da sustentabilidade permite que as companhias sejam melhores e que no Brasil as diferenças sociais ainda são muito grandes. "Os 20% mais pobres da população recebem apenas 3% da renda nacional, provando que as empresas ainda falham na construção de um desenvolvimento sustentável", observou.
Schmidheiny ressaltou que o mundo é formado por 11% de ricos, 11% de classe média e 78% de pobres, e as empresas se empenham em vender para 22% da população. "A questão é atingir os quase 80% que nunca foram clientes. O empresariado não pode prosperar numa sociedade fracassada", defendeu. "Nossos filhos, no futuro, jamais nos perdoariam por não tentar." Para ele, ainda falta às companhias o que chama de solidariedade egoísta. "As organizações não-governamentais conhecem os pobres e as companhias sabem inovar. Juntos podem formar uma aliança poderosa", diz. "Nenhum setor acredita que o governo sozinho criará condições para o desenvolvimento sustentável."
As parcerias representam um bom caminho para projetos eficientes e muitas empresas as adotam para melhorar seu desempenho. "A aplicação, no entanto, deve ser bem escolhida para termos resposta positiva da sociedade", afirmou Sérgio Mindlin, diretor-presidente da Fundação Telefônica e responsável por
uma iniciativa que visa a prover maior educação e proteção, além de auxílio em redes eletrônicas, a crianças e adolescentes residentes nas regiões de atuação da operadora. Para isso, a fundação firmou parceria com os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), beneficiando até agora mil crianças.
Outra que também adota o modelo é a Fundação Telemig Celular. Com dez projetos também destinados a crianças e adolescentes em Minas Gerais, criou um processo para buscar parceiros para cada ação implementada. "Criamos um diagnóstico da situação do setor no Estado, e selecionamos parceiros específicos que melhor se encaixavam em cada projeto", conta Francisco Azevedo, diretor-executivo da fundação.
Desenvolvimento local
"Não podemos só esperar que o Estado traga soluções para os enormes desafios da pobreza e da desigualdade. É importante envolver a sociedade organizada com propostas e os agentes produtivos, para que essa nova articulação possa construir uma alternativa de desenvolvimento com mais equidade para o Brasil". A declaração é de Tânia Zapata, coordenadora de cooperação BNDES/ PNDU para o Gespar (Gestão Participativa para o Desenvolvimento Local), projeto que nasceu há um ano e meio e atua principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Com foco em atuação pedagógica, o Gespar visa a sensibilizar e capacitar parceiros estratégicos, como empresas, governos e ONGs. "Precisamos partir da base, fortalecer as organizações sociais, criar estratégias integradas para as instituições e definir eixo focado em desenvolvimento local", afirmou Tânia.
"Nas parcerias é preciso trabalhar com as mesmas crenças, senão vamos nos juntar para nada", comen- tou ela. "Não há ninguém melhor para gerir os recursos públicos locais do que a própria comunidade", completou Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica (SP). "Dinheiro não tem idéias, quem as têm é quem necessita dele e sabe onde deve ser aplicado."
Tânia acredita que quanto mais as empresas estiverem conscientes de que terão retorno sustentável de seus investimentos na medida da integração ao desenvolvimento do território, mais terão condições de obter esse retorno. "Isso ainda é muito incipiente no Brasil, mas o futuro é promissor: os empresários enxergarão mais e mais se uma sociedade educada, informada e organizada será melhor para os negócios", destacou. Segundo ela, o Estado mantém papel importante nas infra-estruturas do País e na responsabilidade por políticas de saúde e educação. Mas na política do desenvolvimento econômico, todos os atores devem construir nova forma de concebê-lo, surgindo a proposta de articular mercado, empresas e sociedade organizada para sugerir políticas de desenvolvimento. "No País muita coisa já está acontecendo na base de sociedade e municípios", observou. "É aí que haverá pressão por melhores prefeitos, deputados e, conseqüentemente, mudança das elites que até hoje ditam os rumos do País. O Brasil está cheio de planos, o problema é a implementação de transparência e controle social, só pode acontecer quando existe capital social."
Consumidores ligados
"As pessoas redefiniram o processo das empresas na sociedade. Hoje as empresas devem desempenhar papéis que antes eram do governo", afirmou Doug Miller, presidente da Environics International Limited, empresa de consultoria e pesquisa com sede no Canadá. Segundo ele, 25 mil entrevistas feitas ao redor do mundo indicam a expectativa dos brasileiros que as companhias se desenvolvam por uma sociedade melhor. "Os brasileiros têm muito claro o papel da conquista social, e estão preocupados com problemas ambientais e com o futuro de seus filhos e netos", comentou.
Citando o exemplo da Nike, que em dois meses perdeu 20% da participação de mercado nos Estados Unidos por usar trabalho infantil na produção de tênis na Ásia, Miller afirmou que a responsabilidade social faz grande diferença tanto no trabalho como nos meios de consumo. "Quem tem responsabilidade social aumenta a lealdade de consumidores e funcionários e não tem reputação abalada", apontou. "A sociedade brasileira está se movimentando no mesmo ritmo dos países do G7 (os mais ricos do mundo) e superando outros." E dá o exemplo. "Enquanto no Brasil as palestras ficam com gente até do lado de fora, em outros países é feito grande es-forço para reunir 200 pessoas."
Para Hélio Mattar, presidente do Instituto Akatu e da Fundação Abrinq, por muitos anos a única relação entre consumidor e companhias foi a compra dos produtos - por sua qualidade, não em função das empresas. "Era um mundo mais simples. A marca era tudo. O desafio era produzir mais e o consumidor se adequava às ofertas do mercado", lembrou. De acordo com ele, porém, o maior nível de informação da sociedade leva o consumidor a ressoar o que sabe sobre uma empresa em suas compras. "As companhias não podem mais se esconder atrás de seus produtos. O consumo é um exercício de identidade para o consumidor, que já diz não a muitas coisas. Responsabilidade social é a prática do dia-a-dia se refletindo em todas as suas ações", disse Mattar. Segundo ele, o desafio é passar a imagem para a reputação da marca, como expressão cotidiana de valores e princípios colocados na prática. "Assim os elementos estarão tatuados no consumidor, criando vínculo afetivo com a empresa."
Preconceito racial no Brasil
O movimento de responsabilidade social assola o País, mas ainda é impressionante como os negros que vivem no Brasil sofrem com o preconceito racial - apesar da maioria de empresas e cidadãos não admitir a discriminação. Sueli Carneiro, diretora-executiva do Geledés - Instituto da Mulher Negra, emocionou os presentes lembrando que o primeiro passo para combater a discriminação é admiti-la. "O pior tipo de racismo é o que temos aqui: velado de uma falsa democracia racial, em que as diferenças não são valorizadas, mas usadas como forma de exclusão", diz.
Os números comprovam: embora 44% dos brasileiros sejam negros, apenas 2% chegam às universidades. Dos 53 milhões de pobres do Brasil, 70% são negros. Os que, a duras penas, ingressam no mercado de trabalho, ganham menos que brancos ocupando o mesmo cargo - pior ainda se for mulher. Estudo de ONGs ligadas à promoção dos direitos humanos apontou que se o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, que em 1999 ficou em 74º lugar mundial, considerasse só a população branca, subiria para a 49ª posição; levando-se em conta apenas a população negra, cairia para o 108º lugar.
Para reverter essa situação, Sueli acredita que medidas compensatórias como garantia de cotas em universidades e repartições públicas são um primeiro passo, mas falta a implementação de políticas de democratização racial. "Cor da pele não é critério de seleção", defendeu. "A condição de vítima não estava escrita na História, foi construída. Queremos nos tornar agentes participativos para o desenvolvimento do País, que se foi capaz de construir o mito da democracia racial, poderá também torná-lo realidade", finalizou Sueli, aplaudida de pé pelos mais de 600 ouvintes.
Empresas e sociedade
Durante o evento, foram divulgados os dados da pesquisa "A ação social das empresas no Brasil", realizada em todo o País pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Segundo a coordenadora geral de projetos especiais Ana Maria Peliano, o levantamento aponta que 59% das empresas privadas brasileiras com um ou mais empregados realizam algum tipo de atividade em benefício da comunidade. Ao todo, cerca de 465 mil companhias de todos os portes aplicaram 4,7 bilhões de reais em 2000 (83% desembolsados por empresas da região Sudeste, 7% do Sul, 6% do Nordeste, 3% Centro-Oeste e 1% da região Norte). Parece muito, mas representa apenas 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. "Mas tende a crescer, já que 39% das empresas declaram que pretendem ampliar sua atuação", diz Ana Maria.
Segundo o estudo, a maior participação na área social é de empresas de grande porte, com mais de 500 empregados: 88% financiam ou apóiam ações em benefício da comunidade, contra 54% daquelas com entre um e dez funcionários e 69% das que têm entre 11 e 100 empregados. No total, 76% das empresas apontaram ser movidas pela filantropia; as áreas de assistência social (54%) e alimentação (41%) são prioritárias e a maioria (62%) está voltada à idade infantil. No setor de comércio, 61% das empresas atuam na área social. Na indústria, 60%, e em serviços, 58%. O próximo passo do Ipea, segundo Ana Maria, é detectar que tipo de empresa, de que setor, investe em quais áreas, como educação ou meio ambiente.
De acordo com ela, as empresas começaram a atuar com mais intensidade na área social a partir de 1990 quando houve maior mobilização da sociedade para as questões sociais, a Eco 92 e o boom das ONGs. "Hoje, responsabilidade social não é moda, é exigência", disse. Ana Maria frisou que o pecado das empresas em suas ações sociais é ficarem presas a necessidades emergenciais da comunidade, pulverizarem recursos e centralizarem a gestão das ações. "Os funcionários devem ser participativos, podendo interferir nas comunidades", afirmou.
Em contrapartida, ela lembrou avanços como maior sentimento de responsabilidade social empresarial e inserção do assunto em estratégias; participação pró-ativa; parcerias com comunidades; preocupação com resultados em ações comprometidas com metas; divulgação das ações, para disseminar a experiência; e aproximação com o Estado. "Mais de 40% de empresas do Sudeste já apóiam programas governamentais", observou.
Responsabilidade social para o sucesso das marcas
Adrian Hodges, diretor para América Latina da Prince of Wales Business Leader's Forum (PWBLF), afirmou que grande parte dos empresários já percebeu que a prática da boa cidadania corporativa é capaz de garantir a sustentabilidade de seus negócios e o sucesso das marcas. "Há uma oportunidade das empresas se diferenciarem", destacou. "Às vezes leva 20 anos para construir uma marca e cinco minutos para destruí-la. Assim como a sociedade influencia os negócios, o contrário também acontece." David Murphy, diretor de projetos da New Academy of Business, observa que a responsabilidade empresarial torna-se cada vez mais necessária para a sobrevivência das corporações. "A sociedade civil está mais atenta aos procedimentos internos das empresas, por isso a clareza nos negócios é fundamental."
O outro lado da moeda
A participação empresarial na vida da comunidade carente tem beneficiado muita gente. Mas até que ponto a iniciativa privada o faz por questões humanitárias? Stephen Kanitz, criador do Prêmio Bem Eficiente, que avalia o desempenho das entidades sociais brasileiras, acredita que as empresas devem ter cautela ao investirem em ações sociais. Ele ressalta que isso não quer dizer que não sejam socialmente responsáveis. "Pagar impostos, tratar bem funcionários, cuidar do meio ambiente e ter bons produtos e serviços é obrigação", diz Kanitz.
Ele define três tipos de empresas. Um, cerca de 5% do total, as que realmente assumem uma postura de responsabilidade social - geralmente pequenas e médias que contribuem por doações do próprio dono, numa atitude ética do empresário. Depois, as que querem só fazer marketing social e escolhem projetos pensando naqueles que mais agradam ao consumidor (25%). Por fim, com 70% das empresas, aquelas que querem atuar com ações sociais, começam com postura humanitária, mas acabam se deixando levar por alguém da empresa que quer tornar o projeto conhecido. "É quando alguém diz: vamos tentar ganhar algum prêmio de responsabilidade social", diz Kanitz.
Para não adotar postura que não seja a humanitária, o consultor é a favor de doações. "As políticas públicas devem ser determinadas pelo Estado ou pelo ser humano, como posição ética do indivíduo ou como filosofia de vida", opina o consultor, dizendo não gostar do modelo neoliberal de que responsabilidade social é das companhias, porque "faz com que empresários usem critérios de negócios para decidir como o dinheiro será gasto na área social, muitas vezes baseados em retorno sobre o investimento. Nesse setor devem ser usados critérios humanitários, não neoliberais", afirma Kanitz. "Lucro não deve ser o foco na área social." Recentemente, ele inaugurou um site de doações on-line (www.filantropia.org) que reúne as 400 maiores entidades do País e os 40 maiores bancos. O interessado escolhe a entidade e deposita diretamente no banco para a instituição. "É mais fácil uma entidade arrecadar dez reais de cinco mil pessoas diferentes do que conseguir 50 mil reais de uma empresa", diz o consultor. "Elas estão parando de doar para investir em projetos próprios." Outro projeto é o "Cheque Donativo": Kanitz e os outros três autores do livro Ponto de Vista doarão três reais dos direitos autorais para a entidade que o leitor escolher para sua própria doação - um cheque donativo acompanha cada exemplar do livro.
A união faz a força
A primeira dama Ruth Cardoso, presidente do "Comunidade Solidária", acredita que a parceria entre Estado, empresas e sociedade civil nas ações sociais é fundamental para o desenvolvimento de um país. "Creio que em todo o mundo caminha-se cada vez mais para uma congruência das ações entre a sociedade civil, os governos e as empresas privadas. Nesse sentido, instituições e ONGs, por exemplo, têm um papel importante como parceiras no processo de formulação das políticas sociais", diz. "Temos de entender que a sociedade civil organizada trabalha em função do interesse público. Por ter acumulado um volume considerável de experiências e de conhecimento em sua atuação na área social, ela apresenta-se como indispensável companheira do governo no enfrentamento da pobreza, das desigualdades e da exclusão social".
Segundo ela, é dessa forma que se organizam todos os programas ligados ao "Comunidade Solidária" e cita o exemplo do "Alfabetização Solidária'. "A ação junto às comunidades com altos índices de analfabetismo entre jovens de 12 a 18 anos é realizada pelos alfabetizadores, a maioria moradores dos próprios municípios em que o programa atua. Cada alfabetizador é capacitado por professores das universidades parceiras e acompanhado por monitores. A prefeitura do município atendido se responsabiliza pela cessão da estrutura física (salas de aula) e o financiamento é dividido entre o MEC (que também se responsabiliza pelo material didático), e empresas privadas", explica. "A aposta é que, com uma articulação bem realizada - que consiga credibilidade entre financiadores, atores sociais e público-alvo dos projetos - as iniciativas tenham prosseguimento independentemente do governo que esteja no poder", comenta.
Quanto à atuação do "Comunidade Solidária", dona Ruth a considera como um instrumento inovador de ação social. "Todos os programas mostram resultados bastante animadores em seus balanços. Gosto de chamar a atenção para o "Artesanato" porque ele tem mostrado às famílias que não precisam abandonar suas comunidades para tentar melhor sorte nos grandes centros. Resgata-se, assim não só a cultura local mas também, a auto-estima dos artesãos, e os coloca na posição de atores ativos no seu processo".