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Infância perdida
Os nomes das personagens desta matéria são fictícios. As duas crianças que aparecem no texto estiveram envolvidas com prostituição e uso de drogas, no Lagamar. Ambas afirmam que desejam outros caminhos. Mas o poder público, em Fortaleza, não oferece tratamento para dependência química nesta faixa etária
Clarisse Furlani da Redação
Maria do Sol, 11 anos, é a mais velha de quatro irmãos. Tem corpo, jeito e sorriso de menina; chama de ''tio'' e ''tia'' os mais velhos. Divide o teto com mãe, irmãos, tias, primos; quase duas dezenas de pessoas, entre elas Eliana, seis meses ou pouco mais, que ensaia os primeiros passos. Maria do Sol quer ganhar uma bicicleta; mas seus sonhos de criança vêm sendo podados. ''Qualquer coisa'' é o que diz querer ser quando crescer.
O nome é tomado emprestado de personagem de novela, destas que se apaixona por galã rico, sofre, mas tem garantido um final feliz. Maria do Sol acha que isso só existe em novela. Não quer ter filhos, nem casar. ''Menino dá muito trabalho. E homem sempre trai, e a gente sofre'', diz, entre monossílabos. Pré-adolescente, mora no Lagamar, não estuda, fez ''ponto'' desde os oito anos, fumou ''pedra'' (crack), chegando a ficar quatro dias fora de casa, sem dormir. Mas não quer fazer mais nada disso.
Samara é um ano mais velha, tem 12, e é ''amiga rival'' de Maria do Sol. ''A gente sempre briga e sempre faz as pazes'', explica. Maior, mais desinibida, Samara fala das cenas do submundo com desenvoltura: aliciadoras, ''boquete'', homens ''bons'' (os que pagam mais que R$ 10,00), homens ruins (os que batem), ''os homi'' (policiais que pagam só R$ 5,00 por um programa, e cobram R$ 100,00 quando flagram um adulto e uma menina). A descrição sombria contrasta com a paisagem colorida que vai surgindo na ponta do giz de cera: praia com arco-íris, coração espetado de cupido, flor de cinco pétalas assinaladas, amor, paz, carinho, felicidade, ''não use drogas''. Samara prometeu para Jesus: não quer mais crack, nem programas.
Maria do Sol e Samara terão de enfrentar muitos obstáculos para mudar de vida. Além das dificuldades que decorrem da péssima condição financeira de suas famílias, o serviço público em Fortaleza oferece poucas opções de atendimento para o perfil das meninas: vítimas de exploração sexual, mulheres, menores de 12 anos, usuárias de entorpecentes. Entre os programas oferecidos pelo poder público, apenas o Sentinela - programa do Governo Federal que, no Ceará, é desenvolvido em parceria com a Secretaria do Trabalho e Ação Social (Setas) - tem foco exclusivo nas crianças e adolescentes vítimas de abuso, violência e exploração sexual. O Sentinela encaminha as crianças para atendimento em uma rede que integra outros projetos para a infância e adolescência.
Os outros projetos, incluindo abrigos, atendem a crianças e adolescentes em situação de risco pelos mais diversos motivos, sem enfoque específico para vítima de exploração sexual. Maria do Sol e Samara já estiveram em alguns destes abrigos e fugiram. ''Não tinha ninguém que me entendesse. Se eu fosse junto com a Samara, eu ficava, porque teria pelo menos uma amiga lá'', diz Maria.
Para crianças e adolescentes usuários de drogas, a situação é pior. O único estabelecimento público com atendimento especializado em tratamento de dependentes é o Hospital Mental de Messejana. Mas ali o serviço é voltado para jovens e adultos e, salvo exceções, só são atendidos maiores de 16 anos. A Setas auxilia financeiramente oito entidades filantrópicas, comunitárias ou religiosas que trabalham com adolescentes usuários de drogas, mas a maioria tem vagas reduzidas e enfoca o público maior de 15 anos, mesmo abrindo exceções em alguns casos.