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Cidadania em várias frentes
Por Jornal Valor    9 de novembro de 2001
O tema, de definição complexa, está na ordem do dia e inspira várias
iniciativas desenvolvidas por empresas, fundações e organizações
não-governamentais de diferentes pontos do país que procuram assegurar
direitos e estimular a participação
Helô Reinert, Para o Valor, de São Paulo
Um grupo de estudantes de Manaus estava descontente com a forma que a mídia tratava os problemas e os anseios de crianças e adolescentes. Depois de discutir a questão à exaustão, seus integrantes tomaram uma atitude. Decidiram fazer um jornal, ao qual deram o nome de "Uga-Uga". A publicação bimestral atende a um público-alvo de 37 mil alunos da rede municipal de ensino. Ela trata não apenas dos direitos e deveres do grupo a que se destina, mas dá a ele condições de opinar. Gera um processo dinâmico.
Por intermédio desse projeto, que recebeu o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Criança (Unicef), adolescentes e jovens de 12 a 20 anos dizem que exercem sua cidadania. Assim, como esse jornal, muitos projetos desenvolvidos pelo terceiro setor se apóiam no conceito de cidadania, que por ser muito amplo, admite múltiplas definições.
O sociólogo Francisco de Oliveira observa que o fato de a palavra cidadania estar na ordem do dia é um avanço. "O Brasil é um país que desrespeita e destitui os direitos do cidadão", diz o professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Centro de Estudo dos Direitos da Cidadania da universidade. "Falar com insistência sobre o tema é importante."
Estudioso do assunto, ele reconhece que é difícil definir cidadania. Mas destaca que é importante ter em mente que se trata de um conceito dinâmico. "É um Estado ativo, onde cidadãos exercem suas escolhas e têm possibilidade de ampliá-las", explica. Oliveira pondera que algumas entidades do terceiro setor enfatizam um aspecto parcial da cidadania ao promover a satisfação de necessidades. "Não há cidadão passivo."
A Fundação Orsa orgulha-se de trabalhar para promover cidadania. O diretor Roberto Rivetti acredita que colocar em prática a teoria significa garantir a crianças e adolescentes o direito à saúde, educação, família e principalmente apresentar a esse público um novo modelo de vida. Seu raciocínio é claro. Em comunidades carentes, as crianças estão expostas a uma rotina de violência, convivem com famílias desestruturadas, alcoolismo e drogas. "Se não oferecermos a essas crianças um cotidiano diferente, elas tendem a reproduzir o modelo que conhecem", teoriza Rivetti.
A Orsa atende 2 mil crianças em dez cidades brasileiras. Oferece atividades variadas. Depois da escola, elas vão às sedes da fundação onde se ocupam de maneiras diferenciadas. O programa da fundação é amplo e diversificado. Vale-se da arte como instrumento de educação, oferece cursos profissionalizantes e de combate à desnutrição. Por intermédio dessas ações, a fundação quer dar condições às crianças de conhecer o que elas podem ser e fazer.
Rivette acredita que a Orsa apresenta um ambiente mais estruturado e menos violento a esses jovens. Nele, as pessoas estariam mais aptas a participar e se tornar cidadãos. "O que acontece de negativo no país é por ausência de cidadania."
Nem todos os brasileiros têm consciência de sua cidadania. Há praticamente consenso sobre isso. Mário Volpe, oficial de projetos da Unicef, lembra da intervenção de uma criança num seminário promovido em Goiânia, no mês passado. Ela disse que as crianças e adolescentes têm o direito de conhecer os seus direitos. Volpe ficou surpreso. A participação acrescentou um novo elemento na definição de cidadania adotada pelo Unicef. A explicação dele é complexa.
Volpe lembra que houve um tempo em que o exercício dos direitos do consumidor era o exemplo de cidadania. Ele diz que essa conquista mostrou que as pessoas têm o direito de exigir seus direitos, mas isoladamente, simplifica o conceito de cidadania. "É preciso que a sociedade se organize para que todos tenham direito, e não somente quem consegue reclamar", diz. Volpe acrescenta que cidadania prevê a construção de novos direitos. Dá como exemplo o processo da polêmica lei da união entre pessoas do mesmo sexo. "No centro da discussão da cidadania está a responsabilidade para o bem-estar da sociedade e não apenas a discussão entre direitos e deveres."
Quando o vice-presidente do Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), Leo Voigt, deparou-se pela primeira vez com o conceito de cidadão ele o encontrou condensado na frase "cidadão é aquele que vota". Era um momento em que a discussão sobre democracia estava presente e forte no Brasil. Anos depois, já na Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, foi apresentado ao trabalho desenvolvido pelo professor de direito Eduardo Kroeff Machado Carrion, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URGS). Nele, cidadania aparece como uma mescla de três gerações de direitos. Os individuais e civis resultantes da Revolução Francesa, os econômicos e sociais de orientação socialista decorrentes do surgimento do proletariado e os direitos a solidariedade e fraternidade posteriores à Segunda Guerra Mundial.
O estudo mostra que o conceito de cidadania permanece em expansão. "O cidadão não é apenas a pessoa que vota. Ele é a pessoa que come, que é educada, que se preocupa com o meio ambiente e que interage." Voigt lembra que o Brasil dispõe de leis avançadas, porém não as aplica. "A sociedade, por intermédio de ONGs, tem feito a lição de casa melhor que o poder público", diz.
Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, alerta para o perigo de se confundir cidadania com assistencialismo. "Promover ações filantrópicas pode ser fácil. O difícil é agir sobre as causas dos problemas e promover transformações", diz. Ele sustenta que responsabilidade social e cidadania andam juntas e faz um alerta. "Não adianta uma empresa apoiar um projeto social se, ao mesmo tempo, engana o fornecedor, destrata o funcionário e joga lixo no rio."
Para ele, cidadania não admite ações isoladas. Segundo Grajew, o Brasil evolui desde o fim da ditadura militar e a democracia participativa tende a ficar cada vez mais robusta. "Quanto mais cada um de nós participar, mais o Estado será obrigado a ser eficiente e honesto", analisa. Para ele, a democracia participativa exige que as pessoas ajam em favor da comunidade.
A empresa mineira Telemig Celular age em diferentes pontas. De um lado, contribui para levar o Conselho Municipal do Direito da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar a todos os municípios do Estado de Minas Gerais. De outro, estimula os funcionários a fazer doações para o Fundo da Infância e Adolescência (FIA). Pessoas físicas podem deduzir do IR a pagar o valor doado ao fundo até o limite de 6%.
O Instituto Telemig financia a doação do funcionário, que será descontada em seis parcelas depois da restituição do imposto de renda no ano seguinte. A própria empresa, como prevê a lei, destina 1% do seu imposto de renda para esse fim. Os recursos são dirigidos a projetos como bolsa-escola que visam a inclusão social. Assim, a empresa acha que promove responsabilidade social e, por conseqüência, cidadania.
A discussão sobre o tema cresce em diferentes setores. A Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento da Cidadania vão criar uma escola voltada para esse assunto. Um grupo de trabalho foi constituído para definir cadeiras e módulos do curso. A Fundação Getúlio Vargas também participará da elaboração do programa. Até o fim do ano, o primeiro esboço da Escola de Cidadania e Política deverá estar pronto. Ela começará a funcionar no começo de 2003. "A escola formará líderes preocupados com ética e cidadania", diz Paulo Saab, presidente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento da Cidadania. As expectativas dele são grandes. Saab espera que a iniciativa, que é suprapartidária, seja adotada por vários Estados brasileiros.
Com atuação diferenciada, o Instituto da Cidadania, ligado ao presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, elabora projetos de políticas públicas para o país há mais de uma década. No começo dos anos 90, ele elaborou uma proposta que inspirou a Ação de Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida, que ficou conhecida como a campanha do Betinho. O instituto se pretende um fórum de debate que agregue sindicatos, movimentos populares, ONGs e grupos intelectuais. As propostas são tornadas públicas e levadas aos poderes Legislativo e Executivo para aprofundamento. Os principais temas são alimentação, moradia, educação e emprego.
Helô Reinert, Para o Valor, de São Paulo
Um grupo de estudantes de Manaus estava descontente com a forma que a mídia tratava os problemas e os anseios de crianças e adolescentes. Depois de discutir a questão à exaustão, seus integrantes tomaram uma atitude. Decidiram fazer um jornal, ao qual deram o nome de "Uga-Uga". A publicação bimestral atende a um público-alvo de 37 mil alunos da rede municipal de ensino. Ela trata não apenas dos direitos e deveres do grupo a que se destina, mas dá a ele condições de opinar. Gera um processo dinâmico.
Por intermédio desse projeto, que recebeu o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Criança (Unicef), adolescentes e jovens de 12 a 20 anos dizem que exercem sua cidadania. Assim, como esse jornal, muitos projetos desenvolvidos pelo terceiro setor se apóiam no conceito de cidadania, que por ser muito amplo, admite múltiplas definições.
O sociólogo Francisco de Oliveira observa que o fato de a palavra cidadania estar na ordem do dia é um avanço. "O Brasil é um país que desrespeita e destitui os direitos do cidadão", diz o professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Centro de Estudo dos Direitos da Cidadania da universidade. "Falar com insistência sobre o tema é importante."
Estudioso do assunto, ele reconhece que é difícil definir cidadania. Mas destaca que é importante ter em mente que se trata de um conceito dinâmico. "É um Estado ativo, onde cidadãos exercem suas escolhas e têm possibilidade de ampliá-las", explica. Oliveira pondera que algumas entidades do terceiro setor enfatizam um aspecto parcial da cidadania ao promover a satisfação de necessidades. "Não há cidadão passivo."
A Fundação Orsa orgulha-se de trabalhar para promover cidadania. O diretor Roberto Rivetti acredita que colocar em prática a teoria significa garantir a crianças e adolescentes o direito à saúde, educação, família e principalmente apresentar a esse público um novo modelo de vida. Seu raciocínio é claro. Em comunidades carentes, as crianças estão expostas a uma rotina de violência, convivem com famílias desestruturadas, alcoolismo e drogas. "Se não oferecermos a essas crianças um cotidiano diferente, elas tendem a reproduzir o modelo que conhecem", teoriza Rivetti.
A Orsa atende 2 mil crianças em dez cidades brasileiras. Oferece atividades variadas. Depois da escola, elas vão às sedes da fundação onde se ocupam de maneiras diferenciadas. O programa da fundação é amplo e diversificado. Vale-se da arte como instrumento de educação, oferece cursos profissionalizantes e de combate à desnutrição. Por intermédio dessas ações, a fundação quer dar condições às crianças de conhecer o que elas podem ser e fazer.
Rivette acredita que a Orsa apresenta um ambiente mais estruturado e menos violento a esses jovens. Nele, as pessoas estariam mais aptas a participar e se tornar cidadãos. "O que acontece de negativo no país é por ausência de cidadania."
Nem todos os brasileiros têm consciência de sua cidadania. Há praticamente consenso sobre isso. Mário Volpe, oficial de projetos da Unicef, lembra da intervenção de uma criança num seminário promovido em Goiânia, no mês passado. Ela disse que as crianças e adolescentes têm o direito de conhecer os seus direitos. Volpe ficou surpreso. A participação acrescentou um novo elemento na definição de cidadania adotada pelo Unicef. A explicação dele é complexa.
Volpe lembra que houve um tempo em que o exercício dos direitos do consumidor era o exemplo de cidadania. Ele diz que essa conquista mostrou que as pessoas têm o direito de exigir seus direitos, mas isoladamente, simplifica o conceito de cidadania. "É preciso que a sociedade se organize para que todos tenham direito, e não somente quem consegue reclamar", diz. Volpe acrescenta que cidadania prevê a construção de novos direitos. Dá como exemplo o processo da polêmica lei da união entre pessoas do mesmo sexo. "No centro da discussão da cidadania está a responsabilidade para o bem-estar da sociedade e não apenas a discussão entre direitos e deveres."
Quando o vice-presidente do Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), Leo Voigt, deparou-se pela primeira vez com o conceito de cidadão ele o encontrou condensado na frase "cidadão é aquele que vota". Era um momento em que a discussão sobre democracia estava presente e forte no Brasil. Anos depois, já na Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, foi apresentado ao trabalho desenvolvido pelo professor de direito Eduardo Kroeff Machado Carrion, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URGS). Nele, cidadania aparece como uma mescla de três gerações de direitos. Os individuais e civis resultantes da Revolução Francesa, os econômicos e sociais de orientação socialista decorrentes do surgimento do proletariado e os direitos a solidariedade e fraternidade posteriores à Segunda Guerra Mundial.
O estudo mostra que o conceito de cidadania permanece em expansão. "O cidadão não é apenas a pessoa que vota. Ele é a pessoa que come, que é educada, que se preocupa com o meio ambiente e que interage." Voigt lembra que o Brasil dispõe de leis avançadas, porém não as aplica. "A sociedade, por intermédio de ONGs, tem feito a lição de casa melhor que o poder público", diz.
Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, alerta para o perigo de se confundir cidadania com assistencialismo. "Promover ações filantrópicas pode ser fácil. O difícil é agir sobre as causas dos problemas e promover transformações", diz. Ele sustenta que responsabilidade social e cidadania andam juntas e faz um alerta. "Não adianta uma empresa apoiar um projeto social se, ao mesmo tempo, engana o fornecedor, destrata o funcionário e joga lixo no rio."
Para ele, cidadania não admite ações isoladas. Segundo Grajew, o Brasil evolui desde o fim da ditadura militar e a democracia participativa tende a ficar cada vez mais robusta. "Quanto mais cada um de nós participar, mais o Estado será obrigado a ser eficiente e honesto", analisa. Para ele, a democracia participativa exige que as pessoas ajam em favor da comunidade.
A empresa mineira Telemig Celular age em diferentes pontas. De um lado, contribui para levar o Conselho Municipal do Direito da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar a todos os municípios do Estado de Minas Gerais. De outro, estimula os funcionários a fazer doações para o Fundo da Infância e Adolescência (FIA). Pessoas físicas podem deduzir do IR a pagar o valor doado ao fundo até o limite de 6%.
O Instituto Telemig financia a doação do funcionário, que será descontada em seis parcelas depois da restituição do imposto de renda no ano seguinte. A própria empresa, como prevê a lei, destina 1% do seu imposto de renda para esse fim. Os recursos são dirigidos a projetos como bolsa-escola que visam a inclusão social. Assim, a empresa acha que promove responsabilidade social e, por conseqüência, cidadania.
A discussão sobre o tema cresce em diferentes setores. A Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento da Cidadania vão criar uma escola voltada para esse assunto. Um grupo de trabalho foi constituído para definir cadeiras e módulos do curso. A Fundação Getúlio Vargas também participará da elaboração do programa. Até o fim do ano, o primeiro esboço da Escola de Cidadania e Política deverá estar pronto. Ela começará a funcionar no começo de 2003. "A escola formará líderes preocupados com ética e cidadania", diz Paulo Saab, presidente do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento da Cidadania. As expectativas dele são grandes. Saab espera que a iniciativa, que é suprapartidária, seja adotada por vários Estados brasileiros.
Com atuação diferenciada, o Instituto da Cidadania, ligado ao presidente de honra do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, elabora projetos de políticas públicas para o país há mais de uma década. No começo dos anos 90, ele elaborou uma proposta que inspirou a Ação de Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida, que ficou conhecida como a campanha do Betinho. O instituto se pretende um fórum de debate que agregue sindicatos, movimentos populares, ONGs e grupos intelectuais. As propostas são tornadas públicas e levadas aos poderes Legislativo e Executivo para aprofundamento. Os principais temas são alimentação, moradia, educação e emprego.