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Dois terços dos pobres e miseráveis são negros

Por Correio da Bahia    20 de novembro de 2001
Para militantes afrodescendentes, dados do governo federal provam que existe racismo no Brasil

Zumbi dos Palmares, que se tornou ícone da liderança, coragem e resistência do povo negro, habitou o Brasil num tempo em que os africanos não tinham direitos. Trezentos e seis anos após a data de sua morte, dia 20 de novembro, os afrodescentes ainda sofrem as conseqüências da escravidão.

Eles constituem a maior parte dos analfabetos no Brasil e das crianças que enfrentam o chamado fracasso escolar. Segundo o governo federal, dois terços dos pobres e miseráveis do país são afrodescendentes. Para militantes dos movimentos negros espalhados pelo território nacional, estas são provas mais do que suficientes que declaram que há racismo no Brasil, sim.

O Dia da Consciência Negra foi instituída em 1978 e celebra, em última instância, a militância, a estética e a riqueza negras. Mas, na prática, o que vem a ser a tão falada consciência negra? Para o bispo auxiliar da Arquidiocese e responsável pela Pastoral Afro, dom Gílio Felício, "é a consciência de que a raça negra é um valor, não pode ser desprezada e precisa ser estimada. Além disso, é a consciência de saber quem são e onde estão os negros hoje, não só em Salvador, no Brasil, como na América Latina e no mundo". O bispo enfatiza, entretanto, que a data de hoje não representa apenas uma celebração reivindicatória, e sim a "saudação da riqueza que o povo negro tem e sonha".

Considerando que assuntos que envolvem etnias podem resultar em interpretações deturpadas, o padre tece uma reflexão lúcida sobre o assunto. "Em princípio, todos os humanos têm as mesmas possibilidades e limites para serem ou não racistas. Não estou dizendo que os negros sejam inocentes, não pecam. Não queremos a guerra, queremos que a paz nasça da justiça na sociedade", explica, observando que "como já se tornou tradição que o negro é inferior, quando ele afirma a sua identidade, as pessoas estranham".

Conceito - O deputado federal Luiz Alberto, acredita que a data e o conceito de consciência negra tenham diversas leituras. "Antes, o problema do negro era tratado de um modo apenas social. Hoje se sabe que as pessoas são discriminadas e pobres porque são negras. Isso é uma consciência diferenciada", disse. O parlamentar acredita que é fundamental o conhecimento da história da África e a trajetória de seu povo. "Cerca de 85% dos desempregados na região metropolitana de Salvador são negros", revela, pontuando que o governo federal adota medidas bem pouco práticas para a construção de uma consciência étnica igualitária.

Dados do Inep revelam que a média de analfabetos no país é de 13,8%. Os dados desagregados revelam que, entre os negros, a taxa é de 21,6% e entre os brancos, de 8,4%. A média de escolaridade dos negros e negras é de dois anos a menos do que a média nacional. O governo federal criou em 1995 o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra, no qual a educação é uma das linhas de ação. Entidades do movimento negro questionam o papel da escola como reprodutora da desigualdade racial e reivindicam ações mais efetivas e estruturais para o enfrentamento do problema. Em Salvador, 81,4% da população é afrodescendente.



Sociedade hierarquizada por raça

"Não estamos fazendo movimento no dia 20 contra os brancos, mas sim a favor dos negros", declara Olivia Santana, diretora da União dos Negros pela Igualdade (Unegro). Para ela, consciência negra é "assumir a negritude, que é muito difícil no Brasil, que é universalista, não tem racismo declarado como em outros países. Assumir é também identificar que se vive numa sociedade racista, hierarquizada por raça e por gênero", disse. Para ela, "consciência negra não é só mostrar o lado floclórico, do negro como dançarino, músico, de corpo forte".

O antropólogo e professor da Ufba, Roberto Albergaria, acha que a consciência negra "é a valorização de uma das facetas de um cidadão ocidental, baiano e afrodescente". Para ele, a última versão adotada pelos movimentos negros por aqui reproduzem o modelo norte-americano, que ele chama de "Black is beautiful made in Bahia". Esta reprodução seriam duas versões de negritude, presentes nas formas política e estetizante.

Uma das linhas de pensamento dos movimentos negros diz que a valorização da estética negra, presente nos blocos afros, afoxés e concursos de beleza negra, por exemplo, serviria de instrumento de ganho de visibilidade e a partir daí, de afetação na sociedade. A linha militante estaria baseada na teoria das minorias, do politicamente correto.

"Ambivalência é o melhor termo para a questão das minorias. É bom porque dá visibilidade. É ruim porque se perde a noção de totalidade, a guetificação perde a noção de realidade", diz ele. Sobre as manifestações públicas do dia 20, o antropólogo acredita que é também uma política do espetáculo. "Eles conseguiram muita coisa com isso mas se fecharam numa militância minoritarista". Para ele, o povo negro não está somente nos bairros aclamados como tradicionais dessa raça.



História de Zumbi

Zumbi foi o líder mais famoso de Palmares, mas tem uma vida envolta em mitos e discussões. Descendente dos guerreiros imbangalas ou jagas, de Angola, Zumbi nasceu provavelmente em 1655 em um dos mocambos do quilombo, em Palmares. Com poucos dias de vida foi aprisionado pela expedição de Brás da Rocha Cardoso e dado ao padre Antônio Melo, em Porto Calvo. O padre criou o menino, batizando-o como Francisco. Com a educação recebida, aos 10 anos, já sabia latim e português, e aos 12 era coroinha. Em uma carta, o padre refere-se ao menino como dono de um "engenho jamais imaginado na sua raça e que bem poucas vezes encontrara em brancos."

Aos 15 anos, o jovem Francisco fugiu da casa do padre e voltou a Palmares. Lá, mudou seu nome para Zumbi. Não se sabe o verdadeiro significado de seu nome, mas alguns historiadores afirmam que pode significar "defunto", "deus da guerra" ou até "morto-vivo", porém não existe uma comprovação definitiva sobre essas hipóteses. Também se defendeu que o nome Zumbi era um título de um posto militar nas forças armadas de Palmares, devido aos inúmeros zumbis que aparecem mortos nos documentos portugueses. No entanto, os vários zumbis existentes nesse documentos podem ter sido fraudes criadas pelos chefes militares portugueses para receberem recompensas dos reis de Portugal.

Em 1673, o nome de Zumbi aparece pela primeira vez nos documentos portugueses quando a expedição de Jácome Bezerra foi desbaratada. Em 1676, em um combate contra as tropas de Manuel Lopes Galvão, Zumbi teria sido ferido com um tiro na perna. Após a assinatura do acordo de paz em 1678, Zumbi rompeu com Ganga-Zumba e foi aclamado Grande Chefe pelos palmarinos que não aceitaram o acordo. Sabendo que sua decisão provocaria uma grande repressão, organizou o quilombo para uma guerra decisiva.

Traído por um de seus principais comandantes, Antônio Soares, que trocou sua liberdade pela revelação do esconderijo de Zumbi, foi morto em 20 de novembro de 1695. A cabeça de Zumbi foi decepada e levada para Recife e pendurada em local público até a total decomposição.



Cursos profissionalizantes

Os músicos e demais trabalhadores afrodescendentes de entidades culturais, como Olodum, Ilê Aiyê, Muzenza e Malê Debalê já vão poder participar, a partir de janeiro do próximo ano, de um programa de cursos profissionalizantes, a ser desenvolvido pelo governo estadual. O governador César Borges assinou ontem, com os representantes das entidades, o convênio, considerado um dos marcos da passagem do Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado hoje.

"O que desejamos é qualificar o trabalhador cultural da raça negra, buscando fazer um pouco do resgate que nós devemos a essa raça que tanto contribuiu para o desenvolvimento do nosso estado", disse César Borges, após ser recepcionado, na Governadoria, com uma saudação de tambores e timbales.

"Através da parceria com essas organizações, poderemos, com certeza, direcionar políticas estruturantes para que a raça negra se promova e, socialmente, seja feita justiça a quem tanto teve e tem papel importante para a Bahia", completou. As aulas, que serão ministradas nos espaços disponibilizados pelas próprias entidades, vão possibilitar formações como tradutor de inglês, guia turístico e técnico em informática.



Acusações de racismo

O Shopping Barra está sendo acusado de discriminação racial por não empregar negros em seu quadro de funcionários. Munidos de faixas e panfletos, estudantes universitários, secundaristas e membros do movimento negro se dirigiram à frente do estabelecimento, ontem à tarde, protestando contra aquilo que definem como segregação. Apoiados pelo advogado Wilson Santos, que entrou com processo no Ministério Público do Trabalho contra o shopping, os manifestantes chamaram a atenção dos transeuntes através de palavras de conscientização.

Os lojistas do shopping são acusados de não admitir negros ou empregá-los somente em cargos subalternos, onde não mantêm contatos com a clientela. Quem denuncia é Nemias Pereira de Souza, membro do Coletivo de Estudantes Negros Universitários da Bahia (Cenunba). "Nós não aceitamos esta política discriminatória e precisamos criar esta consciência no povo baiano. É justamente para isso que estamos aqui", explica.

Segundo Nemias Souza, seria justo que os negros fossem maioria nas lojas já que representam cerca de 85% da população. "Por que o dinheiro dos negros servem para eles e os negros não?", questiona. Para ele, uma boa saída seria boicotar os lojistas que adotassem este tipo de expediente. "Nós precisamos criar a política de não comprar em lojas que discriminam o negro", sugere.

O advogado do Disque Racismo - Serviço de Atendimento às Vítimas de Discriminação Racial - Wilson Santos, encabeça, desde o ano passado, uma campanha contra a discriminação no mercado de trabalho. Segundo pesquisa realizada pelo órgão, apenas 6% dos funcionários dos shoppings são negros. Até o momento, Santos entrou com processo no Ministério Público do Trabalho contra três shoppings - Barra, Itaigara e Iguatemi -, 12 restaurantes e 28 hotéis de Salvador. O telefone do Disque Racismo é 531-4077.

Concepção - O presidente da Associação dos Lojistas do Shopping Barra, Oswaldo Ignácio Amador, nega a existência de discriminação racial no shopping. "Nós avaliamos um funcionário pela sua capacidade e não pela sua cor", alega. Ele admite apenas que o Shopping Barra seja elitizado em relação aos demais, segundo ele, pela sua própria concepção e localização.

Amador declarou ainda que a manifestação é justa e destacou a importância de iniciativas como estas. Ele disse estar disposto a ouvir as reivindicações dos manifestantes. "Nós nos preocupamos apenas com a capacidade e aparência dos funcionários e não com a sua cor", afirma.

Para o comerciante gaúcho Luís Fernando Amann, é um absurdo que ainda exista racismo numa cidade de maioria negra. "Não era para existir este tipo de coisa já que as lojas sobrevivem com o dinheiro deles também. Não dá para entender porque coisas assim ainda acontecem em nosso país".



Cultura ancestral

Muita gente não sabe, mas os negros que foram trazidos da África para o Brasil como escravos não eram selvagens que viviam como animais e sim indivíduos oriundos de sociedades milenares, que possuíam uma cultura e estrutura social própria. Arrancados de suas terras natais, os ancestrais dos afrodescendentes brasileiros exerceram ação determinante no rumo da história e da cultura do país. É por isso que a cultura brasileira apresenta hoje tantos traços dos costumes e do modo de vida dos africanos.

Estes e outros muitos aspectos que envolvem a história do povo africano na África e no Brasil foram abordados na palestra África, Reconstruindo aIdentidade e Auto-Estima do Povo Negro, proferida na tarde de ontem no teatro Cabaré da Raça (Passeio Público) pelo diretor do Centro de Estudos Afro-orientais da Ufba (Ceao), Ubiratan Castro. No evento, que marcou a abertura da 2ª Feira das Nações Africanas do Ceafro, Ubiratan contou para a platéia formada por estudantes e professores negros um pouco da trajetória dos escravos no Brasil e sua luta pela liberdade.

Segundo Ubiratan, diferente do que muita gente pensa, os quilombos não eram apenas locais de concentração de escravos foragidos, que tinham como objetivo guerrear contra os brancos. "Os quilombos eram uma verdadeira república alternativa, que reunia os negros que tinham como sonho viver em liberdade, lutando para a realização de seus desejos", explicou o professor.

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