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Fundamentalismo, integrismo e racismo

Por RITS - Umberto Eco    7 de dezembro de 2001
Falou-se muito, nestas últimas semanas, de um fundamentalismo muçulmano, esquecendo-se que existe também um fundamentalismo cristão, especialmente nos Estados Unidos. Mas, dirá alguém, os fundamentalistas cristãos dão seu espetáculo nas televisões dominicais, enquanto os muçulmanos derrubam torres – e, portanto, é com estes que nos preocupamos.

A pergunta, contudo, é: será que eles fazem o que fazem enquanto fundamentalistas? Ou será porque são integristas? Ou porque são terroristas? Assim como existem muçulmanos que não são árabes e árabes não muçulmanos, haverá fundamentalistas que não são terroristas? Ou que não são integristas?

De hábito, fundamentalismo e integrismo são considerados conceitos estreitamente ligados, e duas formas de intolerância, o que nos leva a pensar que todos os fundamentalistas são integristas – donde, intolerantes, e donde, terroristas. Mas, ainda que isto fosse verdade, não derivaria, daí, que todos os intolerantes sejam fundamentalistas e integristas nem que todos os terroristas sejam fundamentalistas (as Brigadas Vermelhas não o eram, assim como não o são os terroristas bascos).

Em termos históricos, o fundamentalismo está ligado à interpretação de um Livro Sagrado. O fundamentalismo protestante dos Estados Unidos do século 19 (que sobrevive ainda hoje) caracteriza-se pela decisão de interpretar literalmente as Escrituras, especialmente no que se refere às noções de cosmologia, donde deriva a recusa a toda forma de educação que tente minar a confiança nos textos bíblicos, como ocorre com o darwinismo. E igualmente ligado à leitura do livro sagrado está o fundamentalismo muçulmano.

Intolerância – Será o fundamentalismo necessariamente intolerante? Pode-se imaginar uma seita fundamentalista que presume que os seus "eleitos" tenham o privilégio da interpretação correta do livro sagrado sem, nem por isso, manter alguma forma de proselitismo e sem querer, portanto, obrigar os outros a compartilhar de suas crenças, ou a lutar pela realização de uma sociedade política que nelas se baseie.

Entende-se, ao contrário, como integrismo a posição religiosa e política segundo a qual os próprios princípos religiosos devam se tornar ao mesmo tempo modelo de vida política e fonte das leis do Estado.

Se o fundamentalismo é, em princípio, conservador, existem Integrismos que se dizem revolucionários e progressistas. Há movimentos católicos integristas que não são fundamentalistas, que se batem por uma sociedade totalmente inspirada em princípios religiosos sem, nem por isso, impor uma interpretação literal das Escrituras, e talvez até prontos a aceitar uma telogia à Teilhard de Chardin. Existem, contudo, formas extremas de integrismo que se tornam regimes teocráticos, e acabam se ligando ao fundamentalismo. Esse parece ser o caso do regime do Taleban, com suas escolas do Corão (corânicas). Em toda forma de integrismo existe uma certa dose de intolerância para com quem não compartilha de suas idéias, mas essa dose atinge seu ponto máximo nos fundamentalismos e integrismos teocráticos.

Um regime teocrático é fatalmente totalitário, mas nem todos os regimes totalitários são teocráticos (no sentido de substituir a religião por uma filosofia dominante, como o nazismo ou o comunismo soviético).

Racismo – E o racismo? Parecerá curioso, mas grande parte do integrismo islâmico, se bem que antiocidental e anti-semita, não pode ser chamado de "racista" no sentido do nazismo, por odiar uma só raça (os hebreus) ou um Estado que não representa uma raça (os Estados Unidos), mas não se reconhece como "raça eleita", embora aceite como "eleitos" todos os adeptos da mesma religião, ainda que de outras raças.

O racismo nazista era certamente totalitário, mas não havia nada de fundamentalista na doutrina da raça (que substituía o livro sagrado pela pseudociência ariana).

E a intolerância? Ela se reduz a essas diferenças e semelhanças entre fundamentalismo, integrismo, racismo, teocracia e totalitarismo? Existem formas de intolerância que não são racistas (como a perseguição aos heréticos ou a intolerância da ditadura para com seus opositores), existem formas de racismo não intolerantes ("não tenho nada contra os negros; desde que trabalhem e conheçam seu lugar, eles podem ficar consoco, mas não gostaria que minha filha casasse com um deles") e existem formas de intolerância e racismo difuso mesmo entre pessoas que se julgam não teocráticas, não fundamentalistas, não integristas – e temos tido provas disso nestes dias.

Fundamentalismo, integrismo e racismo pseudocientífico são posições teóricas que pressupõem uma doutrina. A intolerância e o racismo populares se colocam antes de qualquer doutrina. Têm raízes biológicas, manifestam-se nos animais como territorialidade, fundamentam-se em reações emocionais (não suportam os que são diferentes deles).

Poder-se-á dizer que, com estas poucas observações, não contribuí para esclarecer as idéias, mas sim para confundi-las. Mas não sou eu que confundo as idéias. O que acontece é que temos de discutir idéias confusas – e é melhor entender que elas são confusas, para melhor refletir sobre elas.



* Umberto Eco é semiólogo e escritor.

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