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Mulheres por um planeta saudável

Por RITS - Thais Corral    7 de dezembro de 2001
Para inúmeras redes de pacifistas e ambientalistas, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável ou Rio+10, que acontecerá em Joanesburgo em setembro de 2002, representa o momento de resgatar o espírito da Rio 92 de recuperar a esperança de maior integração entre as ações da política e os setores da sociedade a fim de solucionar os grandes desafios sociais e ambientais, que ou pioraram ou não melhoraram. Talvez tenham razão em nutrir essa esperança, pois se por um lado os atentados do dia 11 de setembro semearam pânico e colocaram a dimensão da segurança como questão prioritária da agenda das nações hegemônicas.

Por outro lado, há hoje, muito mais que dez anos atrás, a consciência de que é preciso criar mecanismos mais efetivos de governança global que sejam capazes ao mesmo tempo de reduzir a pobreza e combater o crime, de promover o crescimento econômico sem destruir os ecossistemas, fato que acaba por aumentar os problemas sócio-ambientais. Faz crescer o gasto público e desequilibra as contas dos países. Sabe-se também que esses desafios são grandes demais para os governos sozinhos e faz-se, portanto, necessária a colaboração entre todos os setores e a reforma das instituições. Dito de outra forma, a razão para esperança reside no fato de que as premissas que nortearam a formulação da agenda do desenvolvimento sustentável são hoje mais facilmente articuláveis com prioridades políticas dos países do que há dez anos atrás.

Cientes dessa janela de oportunidade que a Cúpula da Rio+10 oferece, lideranças de setores governamentais e não-governamentais – entre as quais se destaca o próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso – defendem que se evite fazer da Cúpula de Joanesburgo uma reunião burocrática que segue o ritual das avaliações processadas a cada cinco anos pela ONU. Já basta a experiência da Rio+5, onde diante da revisão de metas não cumpridas, muitos governos manifestaram-se no sentido de retirar compromissos do papel.

A Rio+10 só será bem sucedida se conseguir viabilizar-se como um espaço de articulação de estratégias, de novas parcerias entre os diferentes setores. As instituições governamentais e a própria ONU têm dificuldade em operar essa proposta, são reféns dos entraves institucionais e burocráticos que as obrigam a respeitar os caminhos habituais até mesmo na intenção de negociar pequenas mudanças de rota. Não é esse o caso das redes que congregam organizações não-governamentais. Numa certa medida essas mesmas redes que deram alma e corpo ao processo da Rio-92, concedendo-lhe legitimidade democrática e viabilidade política, estão articulando-se em torno de campanhas que podem contribuir para gerar o espírito de solidariedade global de que a reunião de Joanesburgo precisa para ganhar importância.

Um exemplo desse tipo de iniciativa é o da rede mundial de organizações de mulheres para o desenvolvimento sustentável. Emersas da política balizada por temas mais tipicamente femininos tais como direitos reprodutivos, combate à violência sexual e doméstica, e reconhecimento pela carga do trabalho domiciliar, as mulheres inauguraram na Rio-92 a participação na política global mais ampla. Esse passo foi dado através de uma estratégia cuidadosamente desenhada: formação de uma coalizão ampla de lideranças mundiais da questão de gênero e a elaboração de uma plataforma de ação que recebeu o nome de Agenda 21 de Ação das Mulheres. A campanha surtiu muitos frutos traduzidos nas mais de 120 recomendações específicas distribuídas nas cerca de 500 páginas e no capítulo 24, incluídos na Agenda 21, o documento oficial da Rio-92, além de outras inúmeras ações que se disseminaram através da atuação dessas redes.

O efeito mais importante desse processo foi a consolidação da questão de gênero na agenda da política global e o reconhecimento das mulheres como interlocutoras no debate das grandes temáticas internacionais. O espaço onde esse fenômeno ficou mais visível foi justamente o das conferências da ONU que se realizaram ao longo da década de 90. Em cada uma dessas conferências, diferentes redes de mulheres promoveram uma campanha específica, que se traduziu em recomendações nas plataformas de ação endossadas pelos governos e o que é mais importante, contribuiu para a expansão de uma nova cultura de desenvolvimento onde a questão de gênero ganhou mais visibilidade.

No contexto da Rio+10 as redes de gênero e desenvolvimento sustentável decidiram resgatar a estratégia que gerou esse movimento, relançando a proposta de uma nova versão da Agenda 21 de Ação das Mulheres 2002, que tem como propósito estabelecer interfaces entre as diferentes temáticas e estimular convergência na ação política. O marco do desenvolvimento sustentável, em sua essência integradora, representa uma oportunidade para reativar essas conexões.

A Agenda 21 de Ação das Mulheres para 2002

A Agenda tem oito pontos identificados a partir das principais interfaces que a questão do desenvolvimento sustentável sugere em sua interrelação com os diferentes aspectos da temática de gênero já incorporados à Agenda Global.

O polêmico fenômeno da globalização abre a lista. Um grande número de organizações e ativistas faz críticas aos aspectos éticos, sobretudo no que tange aos impactos sociais e ambientais decorrentes de uma economia mundial caracterizada pelo livre comércio, livre movimentação do capital financeiro e difusão de padrões de produção e consumo insustentáveis. No entanto, reconhecem também que esses mesmos mecanismos contribuíram para aumentar a participação das mulheres na economia de mercado. Em quase todos os países os índices de participação feminina no mercado de trabalho cresceu. Vale o exemplo do Brasil onde esse índice dobrou desde 1979. Hoje as mulheres formam 44% da força de trabalho brasileira. As mulheres tem se revelado também muito empreendedoras. Estima-se que entre 20 e 30 por cento dos pequenos e médios empreendimentos atualmente no mundo sejam liderados por mulheres. Seu acesso a programas de micro-crédito também é crescente, inclusive porque são consideradas boas pagadoras.

Em termos de propostas a serem levadas a Joanesburgo as redes de mulheres retomam algumas recomendações já incluídas em documentos anteriores da ONU que visam aumentar a transparência das operações financeiras, a governança e a responsabilidade global. A principal delas é a instalação de uma taxa global sobre transações financeiras, uma espécie de CPMF global, cujos benefícios gerados seriam investidos em programas e projetos para redução da pobreza e recuperação de ecossistemas destruídos.

A crescente violência urbana ocasionada pelo crescimento do porte ilegal de armas, pelo tráfico de drogas e mesmo de pessoas, o impacto sobre o meio ambiente e sobre as pessoas gerado pelas guerras e mais recentemente o terrorismo são pontos cruciais na Agenda 21 das mulheres. Em seu papel social de mães e esposas as mulheres, via de regra, sempre foram contra a guerra, destacando-se nos movimentos pacifistas. Em prospectiva as redes de mulheres demandam medidas mais rigorosas que coíbam a reincidência de episódios de violência física e sexual contra mulheres como os assistidos em conflitos étnicos como os da Bósnia e de Kosovo. Maior atenção dos governos e instituições multilateriais de desenvolvimento sobre a violação aos direitos humanos das mulheres causados pelos diversos tipos de fundamentalismo religioso, monitoramento e instalação de penalidades severas para combater o tráfico de mulheres e crianças. A institucionalização da participação das mulheres nos processos deliberativos relacionados com as questões da defesa das nações e as negociações de paz. A participação feminina nesses é praticamente inexistente.

A FAO (Agência da ONU para a agricultura e a alimentação) reconhece que cerca de 60% dos alimentos são produzidos pelas mulheres e isso lhes dá legitimidade para reivindicar proteção da biodiversidade e acesso aos recursos naturais, outro ponto da Agenda da Mulheres. Elas engrossam o coro dos que ressaltam que a diversidade biológica está ameaçada pelos atuais padrões de produção e consumo que contribuem para a destruição dos ecossistemas naturais do qual dependem grandes contingentes humanos. Defendem que os países se empenhem em reforçar os mecanismos de implementação da Convenção sobre Diversidade Biológica. Fruto da Rio 92, a Convenção é vista como um avanço, na medida em que estipula uma distribuição justa e igualitária dos benefícios decorrentes da exploração comercial dos recursos biológicos. Como se tratam de recursos naturais que diferem de país para país, cada um terá que traçar sua própria estratégia. No Brasil, por exemplo, como resposta a lei de patentes de 1996 e de cultivares de 1997, promovidas pelo governo, a Senadora Marina Silva, liderança da Amazônia, aprovou no Senado Federal o projeto de lei de acesso aos recursos genéticos visando criar regras para a concessão de licenças de acesso e uso desses recursos da biodiversidade nacional. O projeto de lei agora tramita na câmara.

Embora se fale muito sobre a necessidade de erradicar a fome, ela é muito mais decorrente da má distribuição do que da falta de alimentos. Estima-se que existem no mundo 800 milhões de pessoas famintas e 2,4 bilhões de mal nutridos. No entanto, com a produção atual de alimentos, cada pessoa poderia comer todos os dias: 1,7 kg de cereais, feijões e nozes, 200 g de carne, leite e ovos, e 0,5 kg de frutas e vegetais. A FAO aponta a marginalização de 1,3 bilhão de agricultores, dos quais grande parte mulheres, como a principal causa da fome e da má distribuição dos alimentos. Outra questão importante para a segurança alimentar, ponto crucial da Agenda das Mulheres, é o uso difundido de agrotóxicos na agricultura. O Brasil é o terceiro maior consumidor do mundo. Apenas 2% da produção agrícola brasileira não contem agrotóxicos. Essas substâncias químicas têm efeitos nocivos sobre a saúde humana e, nas mulheres, causam abortos, má formação dos fetos e diversos tipos de câncer. No contexto da Rio+10, as mulheres querem fazer valer a adoção de uma Convenção Mundial de Soberania Alimentar e Bem Estar Nutricional, à qual se subordinem as decisões tomadas nos campos do comércio internacional e outros domínios, subordinando o comércio internacional de alimentos às necessidades humanas.

A relação população-meio ambiente foi muito questionada pelas mulheres na Rio 92. Dez anos depois o tema segue em pauta. A experiência mostra que é perigoso condicionar o desenvolvimento sustentável à redução do crescimento demográfico. No passado isso justificou políticas de controle populacional coercivas afetando sobretudo as mulheres. Sabe-se que as taxas de natalidade automaticamente declinam quando as condições de vida melhoram. Na Agenda das Mulheres de 2002, a questão população-desenvolvimento sustentável é diretamente relacionada com os padrões de produção e consumo, aspecto convergente com o debate norte-sul. Com uma população estável, as nações desenvolvidas são responsáveis pela maior parte das emissões, do consumo e da produção de resíduos. Sua população equivale a 20% da população mundial e é responsável por 85% do consumo individual do planeta, em contraste com os 20% mais pobres que respondem por apenas 1.3% do consumo individual. As propostas relativas a esta temática continuam a enfatizar a importância de ações positivas que beneficiem a mulher no campo educacional e de saúde. O acesso a meios contraceptivos seguros e ao aborto legal continuam como ponto prioritário entre as propostas.

A discussão sobre Cidades Sustentáveis só tomou vulto nos últimos dez anos, graças aos impulsos dados pela Rio-92 e pela Conferência Habitat II. A necessidade de ambientalizar as políticas urbanas, ou construir cidades que respondam à necessidades socio-ambientais vem ganhando espaço já que um crescente número de pessoas vivem em cidades. As estatísticas falam por si: com mais de 60% do PIB dos países desenvolvidos sendo produzidos em áreas urbanas, em 1990 havia 2,4 bilhões de habitantes urbanos em todo o planeta e, em apenas oito anos, este número saltou para 3,2 bilhões. No Brasil, a proporção de pessoas que moram em cidades era de quase 79% em 1996 e as projeções apontam para uma taxa de 88,94% em 2020. A temática das Cidades Sustentáveis entra na Agenda das Mulheres na medida em que poucas políticas públicas incorporaram a dimensão da divisão sexual do trabalho nas políticas urbanas. A começar pelas creches públicas que ou não existem ou são insuficientes para atender a necessidade das mulheres que trabalham fora e precisariam ter um lugar seguro onde deixar seus filhos. Mesmo questões tais como a poluição do ar ou a ausência de saneamento básico, comuns na cidade, têm impacto sobre o trabalho feminino na medida em que cabe predominantemente às mulheres a execução do trabalho doméstico e o cuidado com os doentes.

Essas questões estão traduzidas em propostas na Agenda 21 das Mulheres, balizadas por uma questão chave que é o acesso à moradia adequada, necessidade crescente de um grande número de mulheres hoje chefes de família.

Os dois tópicos finais da Agenda das Mulheres têm interface com todos os outros, são as questões essenciais para que a meta de equidade de gênero, mola propulsora do movimento feminista dos últimos 30 anos, seja viável: acesso à educação moderna que se traduz, entre outras coisas, na inclusão digital e aperfeiçoamento dos mecanismos de participação política. A sociedade da informação, uma das principais características do século 21, requer outro tipo de educação que lança mão das tecnologias da informação e de sistemas de aprendizado continuado. As desigualdades de gênero balizadas pelas tradições e costumes vigentes em grande parte das sociedades devem ser revistas nesse novo contexto, valendo-se inclusive de ações positivas que quebrem noções cristalizadas.

No que diz respeito à participação política feminina, condição indispensável para que a questão de gênero seja mais central às políticas de desenvolvimento, os resultados de uma longa batalha travada há anos ficam muito aquém do esperado. Entre 190 países somente 9 tem à frente uma mulher e nos parlamentos as mulheres são apenas 10.7%. Embora um grande número de países tenha aprovado a lei de cotas para candidaturas femininas, os resultados desses esforços são mais visíveis no nível local, como demonstra o próprio caso do Brasil. Segundo o TSE, em 2000 foram eleitas 7.001 mulheres para as Câmaras de Vereadores, representando 11,61% do total de eleitos. Para as prefeituras municipais foram eleitas 317 mulheres, representando 5,70%.

A jornada percorrida pelo movimento das mulheres mostra que a articulação dessas ações e conquistas, aparentemente pequenas, às vezes dispersas, se sustentadas ao longo do tempo podem ter resultados significativos que se refletem na mudança de cultura, na própria forma de fazer política, tornando a humanidade mais próxima da utopia do desenvolvimento sustentável.



* Thais Corral é jornalista, coordenadora da Rede de Desenvolvimento Humano (REDEH) e vice-presidente do WEDO (Women, Environment and Development Organization).

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